Jorge Bonito |
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O Instituto da Ação Direta na Defesa da Posse no Código Civil Português: algumas notas |
Palavras-chave: posse; ação direta; tutela privada; direito civil.
Introdução
O Código Civil português define posse como “o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art. 1251.º do CC). Trata-se, por assim, dizer, de uma situação em que se verifica o exercício fático de poderes sobre a res. A causa possessionis é, deste modo, objeto de proteção pelo Direito português, independentemente da inda- gação da concreta titularidade do direito sobre a res. A posse permite a tutela da exteriorização do direito.
O instituto da posse encontra fundamento na defesa da paz jurídica, no bem-es- tar social e na continuidade do valor que representa a utilização da res. A garantia deste instituto é realizada por vários meios de defesa que o Direito Civil (arts. 1276.º a 1286.º do CC) confere ao possuidor, a saber: I) ação de prevenção; II) ação de manutenção; III) ação de restituição; IV) procedimento cautelar de restituição provisória no caso de esbulho violento; V) embargos de terceiro; e VI) ação direta (actio recta).
O legislador elencou um conjunto de pressupostos para o exercício do instituto da ação direta, determinando que todos os meios lícitos devem ser garantidos. O objetivo deste trabalho é discutir esses pressupostos, de modo que a evitar ações que deem lugar a indemnização pelo prejuízo causado, pela aplicação do princípio geral da responsabilidade civil, baseadas na presunção equivocada desses pressupostos se verificarem.
O estudo teve por base uma breve leitura histórico-jurídica, revisitando o Direito Privado Romano, as Ordenações e as várias Constituições Políticas até ao atual Código Civil. Discute-se o instituto com base na revisão sistemática da doutrina nacional e sob o olhar da jurisprudência atual.
O trabalho encontra-se estruturado em três partes: 1. Conceituando a ação direta; 2. Os pressupostos da ação direta; e 3. Os efeitos da ação direta.
A ação direta
Do Direito Romano ao Código Civil atual
Animo solo possessionem adipisci nemo potest, porém, a natureza da posse (ius possidendi) continua a ser controvertida, entre os que a defendem como direito real, tutelada por actiones in rem (Fernandes, 2009; Rodrigues, 1996) e os que a definem como um direito subjetivo sem natureza real, tutelada pelos interdicta possessionis (Ascenção, 2002; Cordeiro, 1993), ou seja, um direito de gozo sem natureza real (Leitão, 2017).
No Direito Privado Romano, para a segurança da posse contra a perturbação ou privação ilícitas ―clandestina possessio e ficta possessio ― recorria-se ao instituto dos interdicta recuperandae possessionis (Kaser, 2011, p. 132). O objetivo dos interditos possessórios era a defesa da posse contra a perturbação ou privação por atuação ilícita. “Pratica arbítrio inadmissível aquele que interfere na posse à força ou ocultamente” (Kaser, 2011, p. 134). Ao privador ou perturbador da posse era-lhe vedado o uso de qualquer poder ―o interdicere― em ambos os interditos proibitórios mais antigos (uti possidetis para imóveis, utrubi para coisas móveis). Não podia, por isso, oporse a que o despojado fosse reposto na posse e devia abster-se de perturbação futura. Se incorresse em desrespeito, era-lhe imposta uma multa (na República tardia ficou obrigado, em juízo, a restituir em espécie, restituere)(1).
No interdictum uti possidetis, “o interdito dirige-se a ambas as partes e proíbe o uso da força contra o último (em face da contraparte) possuidor sem vícios e permite assim a este, se já não possui, usar a sua própria força para recuperar a posse” (Kaser, 2011, p. 134). Nos interditos restitutórios, quem à força expulsasse outrem da posse de um imóvel era-lhe ordenada a restituição ao adversário mediante o interdictum unde vi, desde que a posse não tivesse qualquer vício em relação ao primeiro.
Ao tempo das Ordenações, como principal corpo legislativo do Reino de Portugal, que subscreviam as soluções do Direito Romano, a defesa da posse poderia operarse por via extrajudicial. Em Portugal, publica-se em 1829 um tratado enciclopédico, compendiário, prático e sistemático sobre a posse, conforme o Direito Romano, pátrio e uso das Nações, de 263 páginas, da autoria de Manoel D’ Almeida e Souza, advogado forense e veterano da freguesia de Lobão da Beira (concelho de Tondela), considerando-se que “só o intrínseco mostrará seu mérito, ou demérito a quem o ler” (Souza, 1829, capa). Os Interdictos e Remedios Possessorios Geraes e Especiae, seguindo os preceitos Romanos, partem da questão preliminar: “Se para conseguir os commodos da posse se podem com sá consciencia usar os remedios possessorios, ainda quando se conhece o defeito de Justiça na Causa da proprieda- de” (Souza, 1829, p. 5). Na secção II, sobre a Recuperação da posse espoliada; e por meio de Desforçamento, o autor preceitua (Souza, 1829, pp. 16-19):
§. 10.
Para o Desforçamento há dous meios (sem necessidade de recorrer aos Interdictos); hum deles o mais seguro e prudente, he requerer ao Magistrado assis- tencia de Officiaes de Justiça para o Desforçamento na forma da boa praxe, que lembrou e provou Pereir. de Man. Reg. P. 1. Cap 24. n. 26 et 27. ibid.
Quando spoliatus petit à Judice se restitui incontinenti sibi a jure indulto, ut restitui possit propria auctoritate, de quo in Ord. Liv. 4. Tit. 58 §. 2, non est dubium Judicem manum, seu familiam suam accomodare debere, sumpla informatione possessionis spoliati; quam an accipere possit, parte non citata, dubium est non leve, cum partis citatio semper necessaria sit, ut testium dicta nocere possint. Sed videtur in hoc casu partis citationem omitti posse; quia procedit Judex ex Of icio, ut aliàs in simile est Ord. Liv. 1. Tit. 66. §. 11, et Liv. 2. Tit. 5. §7, et quando exercet jurisdictionem voluntariam, et Liv. 3. Tit.
85. §. 2. Sicut alias citatio omittitur, si res moram non patiatur ex Ord. Liv. 3. Tit. 55. §. 9. et Liv. 1. Tit. 65. §. 73, et Liv. 3. Tit. 78, §. 5. Covarruv. Valasc., etc. hoc enim judicium est sumarissimum, in quo citatio partis omitti potest, Roland . Marcard . Valase., etc.
Nota: O mesmo Pereira prossegue a demonstrar a justiça deste procedimento sem citação de Parte, ainda quando o Desforçamento se requer com assisten- cia dos Officiaes de Justiça para evitar rixas, contra hum Clerigo espoliador; confira-se Cancer. 1. Var. Cap. 7 a n. 70, et Tom. 3., variar. Cap. 17. a n. 344. et Cap. 19. n. 18; aonde largamente prova que aquelle, que tem faculdade de recuperar a posse por autoridade propria, pode recorrer ao Magistrado, que lhe conceda assistencia de Officiaes para occorrer a rixas; e que o Juiz lha pode conceder sem citação de Parte.
Quando porém se requer immissão na posse; não por Desforçamento da espoliada; mas pelos remedios da Ord. Liv. 4. Tit. 57. e Tit. 58. §. 3. e 4, e nestes a assistencia de Officiaes de Justiça; nestes casos, só se pode conceder a assciação com citação da Parte. Vide Luc. de Credit. in Summ. a n. 156, et de Ju- dic. Risc. 44. a n. 65, et de Feud. Risc. 66. n. 12. Rovit ad Pragmat. Regn. Neapol. Rubr. de Conservator. . Pragmat 1. a n. 4. (quidquid dicant Farinac. Q.175. a n. 224, Menoch. Adpiscend. Remed. 6. n. 10. et Remed. 5. a n. 148.)
§. 11.
Se porem o espoliado não quer recorrer a este meio o mais seguro, e provi- dente; ele pela permissão da Ord. L. 4. Tit. 58. §. 2. pode recuperar a posse desforçando-se, ainda que com ajuntamento de gente, quanta lhe for necessa- ria conforme a prepotencia do Adversario: Com tanto que assim o execute in continenti (o que a Ordenação deixa ao arbitrio do Julgador): E isto ainda que se Ajuntamento para esse fim forme numero, que constitua Assuada: E com tanto que assim seja preciso, e se tracte de recuperar huma posse justa, e legi- tima, que foi espoliada: Veja-se largamente Ferreir. de Nov. Oper. L. 4. Disc.10. a n. 9. et Disc. 9. a n. 8.
§. 12.
Esta faculdade, e nestas circumstancias compete ao verdadeiro possuidor con- tra o simples detentor da posse; ao possuidor Civil, ao Emphyteuta, ao Socio, quando o que o não he edifica na cousa commua, ou a accupa; ao possuidor de parte, quando o possuidor de outra o espolia, etc. Veja-se Ferreir. de Nov. Oper. L. 4. Disc. 9. a n. 27.
§. 13.
Porém para se exercitar licitamente, e sem espolio essa faculdade, he necessa- rio, (1.º) que a antecedente posse fosse clara, legitima, e indubitavel, e não tur- bida nem duvidosa: Ferreir. de Nov. Op. L. 6. Risc. 10. a n. 18, (2.º) que no Desforçamento se não exceda, nem altere o modo, e estado da posse antece- dente; porque todo o excesso fica sendo illicito, Post. de Manut. Obs. 1. n. 84., (3.º) que o Desforçamento se faça totalmente, e in continenti, porque ex intervallo sem justa causa já se não pode completar, Ferreir. supra Risc. 9. a n. 38, (4 º) que se faça o Desforçamento antes do recurso a via judicial, porque depois fica illicito, e attentado, Ferreir. supra Risc. 9. n. 42. Cordeir. Rub. 45. a n. 40. Bem que, se requereo a Assistencia judicial, maxime com protesto, pode ter regresso a autoridade própria, Pereir. de Man. Reg. Cap. 24. n. 26. vers. Tandem.
§. 14.
Não he permitido o Desforçamento ainda in continenti ao Socio contra o Socio, que fabrica na cousa comum; aliter se fabrica na cousa commum em pre- juízo do que alliàs he particular do Consocio, Ferreir. L. 6. Disc. 9. a n. 45. ad 49. Barbos. et Tab. Thesaur. Loc. Comm. L. 4. Cap. 26. Ax. 3, prop. fin., Brunnneman. na L. 29. f . ad Leg. Aqui.: Nem por desforçamento desenterrar o Cadaver sepultado em sepultura alheia, Ferreir. n. 43; nem depois de nunciada, ainda só verbalmente huma obra, se pode variar para a via de facto de- molindo-a para recuperar a posse; Ferreir. n. 51. (bem que se contradiz com o que havia escripto desde o n. 22 até 26.)
A última Constituição Política da Monarquia Portuguesa data de 24 de abril de 1838, sob o reinado de Dona Maria II (1919-1853). No seu art. 23.º estabelece-se que “é garantido o direito de propriedade” (2) e que “é livre a todo o cidadão resistir a qualquer ordem que manifestamente violar as garantias individuais, se não estiverem legalmente suspensas” (art. 25.º).
Em matéria de direito civil, Portugal mantinha, ainda, um sistema jurídico baseado no Direito Romano, em particular, as Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603 por Dom Filipe I. O primeiro projeto português de corpus juris civilis, sob a forma de Código, foi coordenado por António Luís de Seabra e Sousa (1798-1895) e só veio a ser aprovado por decreto das Cortes Gerais de 26 de junho de 1867. Dom Luis sanciona o decreto das cortes e dá-lhe carta de lei, em 1 de julho de 1867, entrando o Código Civil em vigor seis meses depois, mantendo-se em vigor até 1967. Sob a epígrafe “Da Posse”, o art. 486.º prescreve que:
A Constituição Política da República Portuguesa, de 21 de agosto de 1911, veio estabelecer que “é garantido o direito de propriedade salvo as limitações estabelecidas” (art. 25.º) e que “é lícito a todos os cidadãos resistir a qualquer ordem que infrinja as garantias individuais, se não estiverem legalmente suspensas” (art. 37.º). O legislador constituinte da Constituição Política da República Portuguesa de 1933, em vigor a partir de 11 de abril desse ano, veio reproduzir o art. 37.º da CPRP de 1911, acrescentando-lhe, nos direitos e garantias individuais do cidadão o direito de “repelir pela força a agressão particular, quando não seja possível recorrer à autoridade pública” (art. 19.º).
Na Constituição da República Portuguesa de 1976, o legislador consagrou o di- reito de resistência, definido como “o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública” (art. 21.º da CRP). No que diz respeito à defesa da posse, o Código Civil define que “o possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336.º, ou recorrer a tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse” (art. 1277.º CC). O Código de Processo Civil, todavia, proíbe a autodefesa, com “recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei” (art. 1.º CPC).
O preceito do art. 1277.º do CC é, basicamente, uma aplicação das regras relativas à suscetibilidade de recursos à tutela privada. No que diz respeito à tutela judicial, peca por não se referir a todos os meios da tutela interdital, colocados à disposição do possuidor, faltando apontar a ação antecedente e o embargo de terceiro (art. 1285.º do CC).
Concetualizando a ação direta
Numa primeira aproximação, não fica margem para dúvida que o legislador é contrário à tutela privada, como regra, para realizar ou assegurar o próprio direito; ainda assim, encontra-se previsto o uso da força como forma de garantia de direitos subjetivos quando não seja possível recorrer à tutela do Estado.
A questão formulada por Santo Agostinho (354-430), na sua obra De Libero Arbitrio, iniciada em 388 e concluída entre 394 e 395, mantem-se atual: “Por qual motivo agimos mal?” (Santo Agostinho, 1995, p. 28) O autor apela à essência do mal que não é mais do que submeter a vontade às paixões e isso só é possível pela livre opção da nossa vontade. Ao longo da obra, Santo Agostinho repete que o ser humano é livre para fazer o bem e não é forçado a cometer o mal por nenhuma necessidade. Se o ser humano age mal é por sua culpa. “Sem livre-arbítrio não haveria mérito nem desmérito, glória nem vitupério, responsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vício” (Santo Agostinho, 1995, p 246). Santo Agostinho constitui-se o defensor da nossa vontade e liberdade.
A norma jurídica é norma de conduta juridicamente valorada, dirigida à vontade, tendencialmente, da maioria dos cidadãos. Interpretando neste espaço o “bem” como a submissão à norma jurídica, fruto da decisão dos representantes dos eleitores ou do próprio punho governamental, justifica-se deste modo que, por natureza, a norma jurídica seja violável.
O Estado pode ser definido como uma sociedade natural. Decorre naturalmente do facto de seres humanos viverem necessariamente em sociedade e aspirarem realizar o bem geral que lhes é próprio, isto é, o bem comum. A sociedade organiza-se, por isso e para isso, em Estado (Lopes, s.d). Numa corrente de fundo democrático, a soberania provém da vontade do povo (teoria da soberania nacional). Para as escolas alemã e vienense, a soberania provém do próprio Estado, como entidade jurídica dotada de vontade própria (teoria da soberania estatal). Decorre daqui o eterno paradoxo da democracia: a soberania provém do povo ou do próprio Estado mediante a maioria das intenções do povo. Ou seja, admite-se sempre que existem minorias que não se identificam com a posição da maioria; ainda assim, estas ficam obrigadas à autoridade da maioria pelo princípio da democracia e do utilitarismo.
Recordemos que Harve Bennett (1930-2015) e Jack Burke Sowards (1929- 2007), os argumentistas do filme Star Trek II: The Wrath of Khan, colocam na boca de Spock, um comandante híbrido vulcano/humano, representado por Leonard Nimoy (1931-2015), a perspetiva utilitária: “Logic clearly dictates that the needs of the many outweigh the needs of the few” (Sallin & Meyer, 1982). O almirante James Tiberius Kirk, interpretado por William Shatner (n. 1931), responde: “Or the one”. Na terceira longa-metragem de Star Trek, Harve Bennett coloca Spock a questionar Kirk acerca do motivo porque a tripulação o salvou. James Kirk responde: “Because the needs of the one outweigh the needs of the many” (Bennett & Nimoy, 1984).
O almirante Kirk não se dispensou de deixar de cumprir um pressuposto lógico, para adotar o utilitarismo do momento, ao salvar Spock. Em regra, a Ordem Jurídica está ao lado das necessidades da maioria, ainda que em casos concretos se possa atender às necessidades de poucos. Não se confunda, todavia, utilitarismo com interesse público. “O interesse público corresponde a um interesse coletivo; não como a soma dos interesses da maioria (the needs of the many), mas antes a dimensão pública dos interesses de cada pessoa enquanto sujeito na sociedade, da comunidade e dos grupos sociais, por meio de um exercício de proporcionalidade racional” (Bonito, 2019, p. 32).
Na prática, quando há resistência ao cumprimento da norma jurídica, a cara- terística essencial do jurídico é a remoção do obstáculo à realização da norma, de modo coativo, com o objetivo da efetivação final da Ordem Jurídica. O titular do direito tem, assim, o direito de se defender (animus defendendi) ou de ser o próprio Estado a fazê-lo.
Chegados aqui, podemos definir genericamente justiça como a realização coativa da composição dos litígios, ou seja, “os processos de efetivar a realização coati- va do direito” (Silva, 1968, p. 8). Quando a efetivação do direito se encontra entregue ao próprio titular que exerce diretamente a própria força ou o faz com auxílio de força privada de que possa dispor, estamos perante justiça privada; se a realização coativa do litígio cabe aos órgãos do Estado, temos justiça pública. Gradativamente, ao longo da história da justiça, o Estado tem vindo a definir os limites de atuação da justiça privada ou a fixar formalismos a que esta deve obedecer. Tendencialmente, a justiça humanizou-se, passando da ação sobre um plano subjetivo para um plano objetivo, com a composição dos conflitos de interesse sobre o património do infrator, diminuindo a justiça privada e dando garantias, através do processo, que o Estado a substituiria por justiça pública e que atuaria com o fim da paz jurídica e social.
A justiça privada é, pois, um modo mais primitivo da tutela jurídica. Um dos maiores inconvenientes da tutela privativa é a associação da força ao direito, fracassando aquele que é mais fraco, ainda que tenha o direito. A justiça privada, preconizada no Código Civil português, é um instituto bem delimitado, que apresenta todas as garantias. Mas à justiça privada importa sobremaneira a resistência material à plena satisfação dos interesses. Conforme define Marques da Silva, “a justiça privada consiste na atuação do titular de um direito para, por sua própria iniciativa e sem a intervenção das autoridades, proteger ou executar o seu direito, violado ou em vias de violação” (Silva, 1968, p. 13).
A justiça privada abrange todos os casos em que a justiça pública se revela im- potente ou deficiente para a satisfação das pretensões do titular do direito violado ou ameaçado. Ou seja, no momento em que falta a força do poder do Estado é que a força privada pode ser eficaz, uma vez que a justiça pública não o seria. Traduz, na prática, o brocardo de Santo Agostinho: lex necessitates est.
Este conceito de justiça privada conduz-nos a um outro: o de estado de necessi- dade, em sentido amplo. Trata-se, essencialmente, de uma alternativa: suportar uma lesão ou omitir um comportamento que seria devido. Este conceito amplo compreende as situações previstas nos arts. 336.º, 337.º e 339.º todos do CC. Deixemos de fora, contudo, os preceitos do art. 339.º do CC, por aqui apenas se discutir o estado de necessidade na sua relevância com a justiça privada. A questão estruturante no estado de necessidade é o conflito de interesses: “para evitar que o perigo faça perecer determinado valor, o agente terá de sacrificar um outro valor jurídico de que não é senhor” (Caetano, 2013, p. 737).
O conflito de interesses é, na essência, entre o agente que quer garantir o seu direito subjetivo e o do Estado que é garante de que o litígio seja justaposto de modo pacífico, com justiça pública. Bem certo que sem a ação do Estado, principalmente por ser inacessível no momento e, portanto, extemporânea, há o risco de inutilização prática do direito, sendo preciso legitimar a intervenção da justiça privada para evitar uma agressão atual e contra legem. O mesmo é dizer que num determinado estado de necessidade justifica-se uma conduta que, em outras circunstâncias, seria ilícita. Há, portanto, interesses privados de satisfação dos direitos subjetivos; porém, acaba por ser também uma forma de garantia do interesse público, na medida em que os órgãos do Estado estão indisponíveis para a utilização do direito. Marques da Silva define como princípio fundamental que “no momento em que falta força do Estado começa o direito dos particulares de se servirem da força privada para garantia dos seus direitos” (Silva, 1968, pp. 16-17). É, pois, a este princípio que, comummente, se designa de justiça privada necessitada ou subsidiária, como forma de auxiliar a justiça pública.
No caso da defesa da posse, sub judice, a justiça privada é repressiva, uma vez que, conforme o próprio art. 1277.º do CC preceitua, a ação consiste numa reação post-factum, depois de efetuada a violação de um direito: “O possuidor que for perturbado ou esbulhado (…)”. Torna-se importante esta distinção, porque a ação direta, preceituada no art. 336.º do CC, supõe uma agressão já finda e consumada; logo, com caráter post-factum, distinguindo-se da legítima defesa que supõe uma agressão atual, iniciada mas não consumada; portanto, com caráter preventivo ex- ante. Id est, a legítima defesa, prevista no art. 337.º do CC e no art. 32.º do CP diz respeito a justiça privada preventiva. Cabral de Moncada defende, todavia, que a defesa por meio de ação pode ser também preventiva sempre que trata de colocar termo a certos estados de incerteza que ameaçam os direitos (Moncada, 1995). In aliis verbis, se o instituto é preventivo para alguns autores, para outros é também repressivo.
Aprofundemos o caso. Para o instituto da legítima defesa é requisito a resistên- cia a um ato positivo capaz de prejudicar uma pessoa ou bens alheios, uma ofensa com caráter material à pessoa ou terceiro, a bens pessoais ou de terceiro. Para a ação direta não se exige uma agressão, mas tão-somente uma violação atual ou eventual de direito subjetivo. Para o exercício da ação direta um direito não carece de ser vencido e incondicional, podendo mesmo os direitos não vencidos ou condicionais servir de base a esta medida de defesa. A justiça privativa preventiva pode, deste modo, atuar sem que haja violação do direito subjetivo; será suficiente uma suspeita fundada da sua violação a breve prazo sem possibilidade de recurso à tutela pública.
Sempre que o agente procura manter uma situação de facto pré-existente a uma agressão, repelindo-a e procurando evitar que ela se finde, estamos perante uma justiça privada defensiva. O recurso à força tem como fito evitar que a violência que afeta o gozo do seu direito prossiga e se mantenha a situação de facto existente no momento anterior à violação do direito. Quando se pretende garantir ou satisfazer diretamente uma pretensão a justiça privada do agente tem caráter ativo, agredindo a esfera jurídica do terceiro. Neste caso, a força não afasta uma agressão mas antes procura obter uma exigência de direito.
Distingamos, agora, a ação direta da legítima defesa, de modo mais preciso. O art. 336.º do CC preceitua que são condições para a ação direta: I) perigo de inutili- zação do direito subjetivo; II) impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais; III) necessidade racional do meio empregado para evitar o pre- juízo. No artigo seguinte, o Código Civil estabelece que para existir legítima defesa devem estar reunidas as seguintes condições: I) agressão ilegal iminente ou em começo de execução; II) impossibilidade de recorrer aos meios coercivos normais para afastar a agressão; III) ponderação acerca do meio empregado para prevenir ou suspender a agressão (art. 337.º CC). O mesmo sentido dispõe o art. 32.º CP: “Meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”. Desta comparação percebe-se que para a legítima defesa é condição necessária uma agressão atual e violadora da lei; na ação direta é suficiente o perigo de inutilização prática de um direito subjetivo.
No caso de agressão de bens, por exemplo, ainda que seja possível e eficaz a ação de indemnização, existe direito de legítima defesa, mesmo não havendo perigo de inutilização prática do direito. Assim estabelece o art. 42.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, ao considerar que as armas de fogo podem ser usadas “como último meio de defesa, para fazer cessar ou repelir uma agressão atual e ilcita dirigida contra o património do próprio ou de terceiro e quando essa defesa não possa ser garantida por agentes da autoridade do Estado”. Para a existência da ação direta é exigível a existência de perigo de inutilização prática do direito, não sendo suficiente a violação atual de um direito; de outro modo pode ressarcir-se dos danos com uma ação de indemnização.
Assim, a legítima defesa assenta numa reação imediata a uma agressão atual (proteção mediante defesa). Para a existência de ação direta não é suficiente a agressão, envolvendo uma reação do titular do direito a um perigo atual ou eventual de inutilização prática do direito (proteção mediante ataque). Note-se que a agressão traduz um ato capaz de prejudicar uma pessoa, terceiros ou património, enquanto a violação representa o perigo da inutilização desse direito subjetivo. Porém, admitamos, que o critério “defesa-ataque” não é o melhor com efeito discricionário, uma vez que na legítima defesa também existe ataque aos direitos legalmente de terceiro.
Mais importante parece ser o momento do exercício da proteção. Agressão atual deve significar que esta ocorre enquanto o agente está presente e que a proteção se dá nesse tempo imediatamente seguinte. Para existir legítima defesa pressupõe-se a existência prévia ou iminente de um ataque. Este instituto procura unicamente a defesa, protegendo a situação de facto existente no momento em que se desencadeia a reação do agente defensor. Não é um contra-ataque. Nesse sentido aponta o Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na sua redação atual). Relativamente à defesa do património do próprio ou de terceiro, a utilização de arma de fogo deve restringir-se exclusivamente a disparos advertência (art. 42.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro). Mesmo o uso de arma elétrica(3) ou aerossol de defesa(4) “deve ser precedido de aviso explícito quanto à sua na- tureza e intenção da sua utilização” (art. 44.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro). A legítima defesa é justiça privada necessitada defensiva. Para este efeito, Marques da Silva definiu legítima defesa como o “instituto jurídico que autoriza o titular de um direito cujo gozo é perturbado por violências atuais e contrárias à lei, a usar da violência, desde que não seja possível recorrer às autoridades públicas, na medida em que for necessário para evitar que se efetive ou prossiga a ofensa” (Silva, 1968, pp. 43-44).
Ora, enquanto a agressão não estiver consumada não existe ainda alteração da situação de facto preexistente à reação do agente. A ação direta é, pois, justiça privada necessitada ativa. Marques da Silva definiu ação direta como o “instituto jurídico que autoriza o titular de um direito a usar ele próprio da violência na medida indispensável para evitar a inutilização prática do seu direito, em virtude da impossibilidade de recorrer em tempo útil à autoridade pública” (Silva, 1968, pp. 43-44).
Licitude da ação direta
O art. 336.º do CC preceitua claramente que só é lícito recorrer à ação direta quando este instituto é “indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais” (n.º 1), expressão correspondente a “meios nor- mais” do instituto da legítima defesa (art. 337.º, n.º 1 do CC). Os meios coercivos normais correspondem aos meios de tutela pública (tutela do Estado), como resulta do vertido dos arts. 21.º e 202.º, n.º 1 da CRP, art. 1.º do CPC e art. 8.º do CPP. Porém, a justiça privada necessitada regulada nos arts. 336.º e 338.º do CC, ainda que subsidiária, tem caráter geral. Este caráter resulta do próprio art. 336.º, n.º 1 do CC, in principiu, sem qualquer distinção quanto aos direitos suscetíveis de serem realizados ou assegurados por meio de ação direta. Qualquer direito pode, assim, ser assegurado por ação direta, mesmo que seja voltado a citase em outros institutos, como é o caso da defesa da posse in judice (art. 1277.º do CC).
Na verdade, o art. 1277.º do CC, in fine, preceitua “recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse”. Note-se, porém, que “a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação” (art. 2.º, n.º 2 do CPC), sendo, por isso, desnecessária a disposição final do art. 1277.º do CC. Porém, não esqueçamos que a qualificação da posse como direito subjetivo não é pacífica na doutrina, importando o argumento para a classificarem desse modo a partir da tutela judicial, uma vez que a toda a ação corresponde um direito.
Pressupostos da ação direta
Recordemos o conteúdo do art. 336.º, n.º 1 do CC para sistematizar os pressu- postos que dominam o instituto da ação direta: “É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a ação direta for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”. A análise técnico-jurídica deste articulado
permite que consideremos os seguintes pressupostos:
Existência de um direito privado que se pretende realizar ou garantir
No caso sub judice, como discutimos anteriormente, a posse é um direito de gozo não real. Mas o que importa, para a norma do art. 336.º, n.º 1 do CC, é que o direito seja suscetível de dar lugar à coação ou à tutela judicial, uma vez que a ação direta é um mero sucedâneo, como vimos, da autoridade nos casos em que esta não pode intervir em tempo útil. Também já dissemos que o di- reito não carece de ser vencido e incondicional, como vem a ser o direito de posse. Ainda assim, mesmo os não vencidos e condicionados podem dar lugar à ação direta, pois a lei não os distingue. E será precisamente no caso do direito não vencido que o perigo é mais frequente.
Destacamos, todavia, que neste caso a ação direta não tem por objetivo satis- fazer o direito do agente, mas somente o de o garantir, uma vez que um direito não vencido (a termo ou sob condição) não pode ser executado. Sendo a ação direta um instituto substituto da justiça pública, a lei não exige para que sejam adotadas medidas cautelares que o direito esteja vencido ou seja incondici nal. Há, por isso, um paralelismo perfeito entre o fim de “assegurar o direito” do art. 336.º e o art. 619.º do CC, quando ao credor se dá a possibilidade de requerer o arresto de bens do devedor, por justo receio de perder a garantia patrimonial, bem como com os correspondentes arts. 391.º e 302.º do CPC.
Uma questão que tem sido levantada é a de saber se o direito condicional não tiver valor patrimonial atual, por ser inverosímil que a condição se verifique, se se pode fundar a ação direta. A doutrina (e.g. , Silva, 1968) tem considerado que, enquanto não existir certeza de que a condição se não pode verificar, será de aplicar o art. 273.º do CC que preceitua que “na pendência da condição (…) o adquirente do direito pode praticar atos conservatórios”. O julgador tem aqui um largo campo de apreciação, competindo-lhe determinar se o ato tem ou não valor patrimonial atual, destacando-se a importância do papel da bona fide das partes (até como caráter da posse ― art. 1260.º do CC). Sem interesse do agente não será admissível a ação direta na defesa da posse. É uma questão de facto saber se há ou não interesse, porque, como dispõe o art. 368.º, n.º 2 do CPC, “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando
o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
Na defesa da posse, o agente não pode usar outros meios que não sejam os permitidos à justiça pública, em virtude da ação direta ser um mero sucedâneo daquela. A pretensão deve, pois, servir de molde a fundamentar medidas judiciais de execução ou de garantia.
Indispensabilidade de recurso à ação direta para evitar a inutilização prá- tica do direito subjetivo
Em caso de perturbação ou esbulho, o possuidor poder atuar para garantir a satisfação do seu direito, mantendo-se ou restituindo-se na posse por sua própria força e autoridade (art. 1277.º do CC), com o fim de evitar a inutilização prática do direito subjetivo (art. 336.º, n.º 1 do CC). A inutilização prática do direito traduz o perigo do direito se perder ou de se tornar mais difícil a sua execução; ou que não exista outro meio de impedir a perda de direito. Alguma doutrina, porém, tem advogado que o vertido na expressão “perigo do direito se perder” não é passível de eliminação pela ação direta, uma vez que este instituto não terá capacidade para remover factos extintivos do direito. Nesse sentido dispõe o art. 392.º, n.º 1 do CPC: “o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (…)”. Assim, parece ser suficiente a existência de perigo de inutilização prática do direito de posse para legitimar a ação direta na sua defesa, não sen- do necessária a certeza absoluta, por esta raramente existir. A existência de perigo deve supor um receio forte, um perigo objetivamente reconhecido, questão de facto que o julgador terá largo poder de apreciação.
Não parece que a amplitude do art. 336.º do CC seja tão grande que possa ser usado para justificar o recurso à ação direta em virtude do tempo necessário que logre correr um processo. Neste domínio, “se o titular do direito agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos que justificam a ação direta ou a legítima defesa, é obrigado a indemnizar o prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável” (art. 338.º do CC). A desculpabilidade do erro ilibará, deste modo, o agente da responsabilidade civil.
Impossibilidade de recorrer atempadamente aos meios coercivos normais
Colocar-se-á a questão acerca dos motivos da impossibilidade de intervenção em tempo útil dos meios coercivos normais. Tal impedimento pode resultar ou de uma interrupção durável de toda a justiça ou de uma impossibilidade momentânea de intervenção, como seria o caso de, mesmo havendo, a autoridade policial se recusar arbitrariamente a socorrer o titular do direito ameaçado. Os “meios coercivos normais” (art. 336.º, n.º 1 do CC) e “meios normais” (art. 337.º, n.º 1 do CC) devem entender-se como intervenção da autoridade, ou se- ja, de todos os órgãos estaduais competentes, tribunais ou força pública. Necessitamos cautelosamente de precisar “em tempo útil” (art. 336.º, n.º 1 do CC) para que não exista a tentação de se admitir a ação direta para toda a pretensão de execução imediata. O meio normal e por excelência de composição de lití- gios é, como se disse, a justiça pública. No caso sub judice, a ação declarativa de condenação (art. 10.º, n.º 3, al. b) do CPC), com processo comum na forma ordinária, pedindo que o possuidor seja restituído provisoriamente à sua posse (art. 377.º do CPC), mantendo-se ou restituindo-se a posse enquanto não for convencionado na questão da titularidade do direito (art. 1278.º, n.º 1 do CC).
Necessidade de verificação cumulativa de todos os pressupostos
Para que a ação direta seja legítima devem verificar-se cumulativamente todos os pressupostos. A falta de um pressuposto torna a ação direta ilícita. Mesmo havendo erro desculpável (art. 338.º do CC), é lícito a defesa contra a ação direta, uma vez que o erro desculpável constitui uma causa de escusa da culpa do agente mas não uma causa de justificação do ato ilícito. Qualquer con- venção que admita um direito de ação direta sujeita a pressupostos distintos dos enunciados pelo art. 336.º do CC é ineficaz; a ação direta só se admite nos termos expressamente declarados na lei:
A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei (art. 1.º do CPC)
O fim da ação direta
O exercício da ação direta pode conduzir diretamente à satisfação do titular do direito ou à obtenção de uma garantia; ou seja, o seu fim é “realizar ou assegurar o próprio direito” (art. 336.º, n.º 1 do CC). O possuidor, por exemplo, por meio da ação direta vence a resistência irregularmente oposta ao exercício do direito (art. 336.º, n.º 2 do CC), ficando a sua pretensão satisfeita com o ato praticado. Alguns dos meios que a ação direta pode concretizar conduzem diretamente à satisfação do titular do direito e outros são meras medidas provisórias de segurança.
O art. 1277.º do CC apresenta a ação direta em alternativa ou opcionalidade à defesa judicial: “(…) por sua própria força e autoridade (…), ou recorrer ao tribunal (…)”. É verdade que ninguém pode ser juiz sereno e imparcial do próprio direito, sem o concurso de circunstâncias especiais, particularmente em casos em que o desideratum de direitos seja de complexa resolução, mesmo para um juiz objetivo e imparcial. Parece, todavia, que se a ação direta serviu apenas para dar uma garantia ao possuidor, por analogia com os Procedimentos Cautelares (art. 364.º do CPC), haverá que intentar, na primeira oportunidade que surja, um processo judicial para se solucionar em definitivo o litígio. Na prática, o fim “assegurar”, previsto no art. 336.º, n.º 1 do CC, pode conduzir a uma situação imperfeita, análoga às situações criadas pelas Providências Cautelares (arts. 362.º e ss. do CPC): “o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva” (art. 364.º do CPC).
Nos casos em que a ação direta conduz diretamente à satisfação do direito do possuidor, em concreto os atos de perturbação ou esbulho de uma coisa, não parece que exista necessidade de se intentar posteriormente a ação, como o próprio art. 1277.º do CC dispõe. Se o possuidor optou pela ação direta e viu a satisfação do seu direito, não tem qualquer interesse em recorrer ao tribunal para que este lhe manten- ha ou restitua a posse, quando, na prática, já se mantém ou a tem(5). O interessado em fazê-lo será o perturbador ou o esbulhador, titular do interesse sacrificado pela ação direta. Parece que quando o resultado da ação direta conduz a uma situação im- perfeita haverá necessidade de recurso ao tribunal para regularizar a situação.
Meios lícitos de exercício da ação direta
Já o dissemos, em outra secção, que o possuidor só pode socorrer-se de meios que forem lícitos aos tribunais usar, que decorre do caráter sucedâneo da ação direta relativamente à justiça pública. O possuidor, no exercício da ação direta, não pode usar de meios vedados à justiça pública e todos os que esta usa podem ser utilizados pelos particulares neste instituto. O art. 336.º, n.º 2 do CC, apresenta uma enumeração de atos em que a ação direta se pode concretizar: “a ação direta pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro ato análogo”. Outros meios, dentro dos limites gerais da ação direta, são considerados legítimos.
Mas, para que não se corra o risco de “outros” e “etc.” conduzirem a extremos, já indexados à sua natureza ilícita, convém concetualizar o significado de “outro ato análogo”. Partindo do princípio de que a ação direta se edifica em dois princípios ―o de vencer a resistência do adversário à satisfação do direito do agente e o da impossibilidade de ir mais além do que a justiça pública― o possuidor teria à sua disposição quatro meios, a saber: a violência, a coação psicológica, o dolo e o ardil. Porém, como bem sustenta Marques da Silva (1968, p. 60), baseando-se em Heyer, uma vez que a justiça privada depende dos recursos próprios do agente, a violência e a coação seriam meios da justiça privada do agente forte enquanto o ardil e o dolo seriam atos de justiça do agente fraco. Tal oposição dicotómica não se coloca quando é a justiça pública a atuar.
A autoridade do Estado está numa posição da máxima força (vis major), poden- do socorrer-se de qualquer dos atos, sobretudo os da justiça do forte. A justiça pública não necessita, por isso, de se socorrer do ardil e do dolo, já que dispõe de outros meios de força, para atingir os seus fins, nomeadamente a prisão (arts. 42.º e 202.º do CPP). O possuidor, com muitos menos meios materiais, dispõe em geral dos mais fracos, necessitando por vezes de fazer uso do dolo ou sua astúcia para conseguir obter os seus fins. A indicação de atos análogos deve, pois, ser entendida que a especificação do art. 336.º, n.º 2 do CC não é taxativa, para que se admitam outros meios, analisados pela similitude e analogia aos que são indicados.
Vejamos, agora, cada meio em particular. O art. 336.º, n.º 2 do CC dispõe a “apropriação” de uma coisa. Apropriar-se da res é um ato dos mais eficazes e naturais para quem pretenda valer-se desse direito: pela força ou pelo ardil. O próprio CPC estabelece que “o fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo” (art. 10.º, n.º 6 do CPC).
Encontra-se prevista a “destruição ou deterioração” de uma coisa (art. 336.º, n.º 2 do CC). Parece, pois, que estes atos possam vir a ser úteis para a inutilização prática do direito que pretende realizar ou assegurar. Assim, por exemplo, o possuidor de determinados bens pode furar os pneus de um veículo onde o esbulhador leva os seus bens. Em geral, estes atos tendem por fim a satisfação do direito ou apenas servem de meio para apropriação de uma coisa, dando origem a uma situação perfeita ou imperfeita. Os prejuízos causados pelo possuidor na prática dos atos de destruição ou deterioração devem ser suportados, desde que não ultrapassem o necessário para evitar a inutilização prática do direito que se quer realizar ou garantir ―pela parte contra quem se exerceu a ação direta. Estes atos podem ser exercidos, também, sobre coisas de terceiros.
O art. 336.º, n.º 2 do CC prevê, ainda, meios contra pessoas, através da elimi- nação da resistência oposta ao exercício do direito. Trata-se do sucedâneo da execução in natura que é permitida aos órgãos da execução pública, através do Código do Processo Civil (art. 10.º, n.º 6 do CPC). Assim, desde que cumpridos os pressu- postos para a ação direta, pode o possuidor socorrer-se deste instituto para eliminar resistência da outra parte, ainda que para tal seja necessária violência, uma vez que, por analogia com art. 757.º, n.º 2 do CPC, quando seja oposta alguma resistência, ou haja receio justificado de oposição de resistência, não existe, em tempo útil, acesso da força pública. Ao que parece, sendo autorizada a eliminação da resistência oposta ao exercício do direito, nada obsta que exista detenção privada do obrigado, embora aqui se trate de uma forma de detenção que se confunde com o vencimento da eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito. Note-se que é distinta a eliminação de resistência ao exercício de um direito; direito que pode ser a própria ação direta, do ato de coação física para obrigar o obrigado a cumprir o seu dever.
Erro acerca dos pressupostos
Já aqui nos referimos ao erro acerca dos pressupostos da ação direta, nos termos do art. 338.º do CC. Dispõe o legislador que a atuação, na suposição errónea de se verificarem os pressupostos que justificam a ação direta, dá lugar a indemnizar o prejuízo causado(6). Ora, ainda que este preceito se inclua sob a epígrafe Disposições Gerais do Exercício e Tutela dos Direitos, não se percebe o motivo de se voltar ao assunto, desta vez sob em Direito das Obrigações, como Princípio Geral da Responsabilidade por Factos Ilícitos: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” (art. 483.º, n.º 1 do CC). Não ficando provados os factos demonstrativos dos requisitos do exercício da ação direta, é recusada a invocação a este instituto(7).
O exercício de um direito constitui uma causa de justificação do ato lesivo dum direito ou interesse tutelado pelo direito. Do conteúdo vertido do art. 483.º do CC, pode haver uma lesão lícita dos direitos ou interesses de terceiros. E, por conseguinte, uma violação lícita será aquela em que existe uma causa de justificação do ato (seja no exercício de um direito ou no cumprimento de um dever). Já ficou claro, pelo anteriormente exposto, que o exercício do direito de ação direta gera, em regra, a violação de um direito ou interesse juridicamente tutelado de outrem; mas uma vez que o agente atua no exercício de um direito concomitantemente não age ilicitamente. O mesmo não ocorrerá quando o possuidor age na suposição errónea de se verificarem os pressupostos da ação direta, sendo claro que se aplica o brocardo ignorantia juris non excusat: “a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas” (art. 6.º do CC).
O princípio geral da responsabilidade civil aplica-se, portanto, aos institutos da ação direta e da legítima defesa. Não será suficiente o ato ilícito para constituir o possuidor na obrigação de indemnizar os prejuízos causados; o legislador pressupõe também a culpabilidade (art. 483.º do CC). Sem uma causa de escusa de culpabilidade o possuidor constitui-se na obrigação de indemnizar. O erro desculpável será causa de escusa (art. 338.º do CC); o mesmo é dizer que o possuidor não deve cair no erro com culpa. Pode considerar-se o erro indesculpável aquele que é vencível como um grau médio de diligência; i.e., o erro que o possuidor podia e devia, em termos de dever-diligência, evitar.
Limites de ação direta
A atuação prática (facto material) do conteúdo (abstrato) de um direito corresponde ao exercício de um direito. O direito objetivo tem como fim a prossecução do interesse público. Os interesses individuais, na sua coexistência, são regulados pelo direito subjetivo. Nem por isso o direito subjetivo é concedido para a satis- fação do interesse individual; deve harmonizar-se com os demais direitos subjetivos (interesses individuais) e com os do coletivo. Surgem daqui as limitações a que o direito subjetivo está sujeito, oriundas da função social e da necessidade da sua coexistência com os outros direitos. Adiante-se, portanto, que o conteúdo dos direitos subjetivos pode estar limitado intrínseca e extrinsecamente.
A limitação intrínseca opera-se quando ocorre um desvio do exercício de um di- reito subjetivo. Trata-se de um ato ilícito. Esta limitação diz-se objetiva quando respeita ao modo e às condições em que o direito pode atuar no mundo externo. Os limites subjetivos “dizem respeito à finalidade que o titular do direito se propõe ou à atitude psicológica deste no exercício desse mesmo direito” (Silva, 1968, p. 68). Tais pressupostos conduzem ao corolário da existência de direitos que só podem ser exercidos em determinadas condições de tempo, em determinado território ou de certo modo (meios que podem ser usados no exercício do direito; as circunstâncias cuja verificação condiciona a legitimidade do exercício do direito, ou a forma como se deve revestir). O limite subjetivo é o do fim do agente; superado esse limite há excesso no exercício do direito e o excesso está previsto e punido no Código Penal (e.g., art. 33.º do CP).
Pode dar-se o caso de direitos subjetivos entrarem em colisão com outros direitos, ferindo interesses respeitáveis e protegidos de terceiros. É neste campo que a ordem jurídica é determinante, apontando o critério de resolução do conflito, hierarquizando a preferência a um ou alguns dos direitos ou limitando-os reciprocamente. São as designadas limitações extrínsecas que se encontram plasmadas no arts. 334.º e 335.º do CC.
Ora, tomando como exemplo a defesa da posse, o vertido no art. 336.º, n.º 3 do CC dispõe que só é lícita a ação direta nos termos estritamente necessários para evitar o prejuízo e se os interesses sacrificados não forem superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar. Analisemos com algum detalhe os dois pressupostos.
No instituto da ação direta, “é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, (…) contanto que o agente não exceda o que for ne- cessário para evitar o prejuízo” (art. 336.º, n.º 1 do CC). No conteúdo carreado para o instituto da legítima defesa o prejuízo causado pelo ato deve ser manifestamente superior ao que pode resultar da agressão (art. 337.º, n.º 1 do CC). Colocados em sinopse os dois preceitos percebe-se que para os atos de legítima defesa existe definido um critério de proporcionalidade, não acontecendo com os atos de ação direta. O próprio art. 334.º do CC evidencia, também, um critério de proporcionalidade, dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Poder-se-á inferir que o legislador teve a intenção de criar um critério mais apertado para a ação direta. Destaque-se que a colocação sistemática situou a ação direta antecedida do abuso de direito e da colisão de direitos, como que a limitar pelo excesso manifesto do fim a atingir e dos interesses sacrificados pelo exercício dos direitos do agente. Caberá pois, ao juiz, respeitando o princípio do livre convencimento, apreciar livremente a prova nos casos concretos que se vieram a suscitar, em que o critério de proporcionalidade entre os meios e os fins será, seguramente, levando em consideração.
Ora, sendo o fim da ação direta evitar a inutilização prática do direito, o meio empregue deve apenas ser o necessário para esse efeito(8). Para a obtenção de uma garantia (assegurar a satisfação de um direito) parece desproporcional que se apreendam bens para além do estritamente necessário para aquela segurança. O mesmo se passará com a remoção de um obstáculo que impede o gozo de uma servidão de passagem, considerado suficiente para satisfazer o direito do agente(9), em vez da sua destruição se o obstáculo tem valor patrimonial, ou a colocação de “sardinhas envenenadas destinadas a eliminar animais que invadem uma vinha para co- mer uvas”(10). Por isso se afirma que os fins não justificam os meios: a escolha dos meios não fica livremente ao arbítrio do agente. O critério determinante deverá ser o da escolha de meios que sejam os menos gravosos para o titular do interesse sacrificado, o mesmo é dizer, o da relação de necessidade entre o meio utilizado e o fim visado.
A questão que parece ser decisiva é perceber os critérios que o agente utilizou para decidir agir. Na prática, podendo invocar-se ignorantia juris non excusat, numa situação concreta de conflito, com um quadro técnico-jurídico ausente ou paupérrimo, o agente tem de tomar uma decisão num período curto e, em regra, sob stresse. O agente há-de hesitar repetidamente antes de atuar, pelo menos sempre que não se sinta capaz de limitar a sua ação à medida estritamente necessária para evitar o prejuízo. Mas a questão de fundo é saber onde é que o agente vai encontrar essa ponderação, escolha adequada das medidas e limitação dos efeitos. Não nos parece estranho que, numa situação de conflito, haja ausência de ação ou exista em excesso. Face ao modo muito vago como a lei aborda o assunto, talvez a intenção do legislador tenha sido, precisamente, limitar a justiça privada pela ação direta, dado o caráter inovador deste instituto.
Outro princípio limitador é o que estabelece que quando se sacrificam interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar a ação direta é ilícita (art.336 .º, n.º 3 do CC). No instituto da legítima defesa, considera-se justificado o ato praticado desde que o prejuízo causado seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão (art. 337.º, n.º 1 do CC). Ou seja, não existe superior interesse pessoal sobre o patrimonial, sendo tudo reduzido ao denominador comum prejuízo e avaliado nesse domínio. Já enunciámos as diferenças entre estes dois institutos, pelo que se compreende esta diferença de posição da lei. A ação direta não satisfaz uma tão premente necessidade e não se afigura, por isso, que seja exercida por meio de atos com que se lesem interesses superiores protegidos no Código Penal.
A ideia subjacente ao art. 336.º, n.º 3 do CC é a de que os interesses pessoais não deveriam ser sacrificados aos interesses patrimoniais. Quando o possuidor usa a sua própria força ou autoridade para se manter ou restituir na posse não existe qualquer ideia de pena ou de retaliação. O fim é sempre o da satisfação ou garantia de um direito. Os interesses sacrificados podem ser desproporcionados; não podem é exceder o que for necessário para evitar o prejuízo. Parece ser esta uma interpretação do art. 336.º, n.º 3 do CC que não deixa sem proteção o titular do direito ameaçado em nome da proteção dos interesses do infrator, proteção que se guarnece com muito menor justificação. Não existe qualquer limite definido em lei que permita, sempre que concorram interesses pessoalmente protegidos e interesses puramente patrimoniais, sacrificar aqueles a estes. Na colisão de interesses de natureza diferente deve estabelecer-se uma hierarquia entre eles, dando-se prevalência ao que deva considerar-se superior (art. 335.º, n.º 2 do CC).
Capacidade e legitimidade para a ação direta
O Código Civil não estabelece, em concreto, o sujeito com capacidade para exercer a ação direta, impondo-se alguma análise. Qualquer sujeito com capacidade de exercício de direitos deverá poder exercer a ação direta (art. 67.º do CC). Os in- capazes só poderão exercer a ação direta por intermédio dos seus representantes le- gais ou autorizados pelo seu curador, exceto quanto aos atos que possam exercer pessoal e livremente (art. 16.º, n.º 1 do CPC). Admite-se legítima defesa contra a ação direta se esta for realizada por um incapaz; todavia, sendo o ato ratificado pelo seu representante legal, dentro dos pressupostos e limites da ação direta (art. 336.º do CC), parece não haver lugar a indemnização de prejuízos causados.
No que diz respeito a capacidade passiva, é relevante relativamente à manifes- tação da vontade do incapaz, uma vez que o Direito pretende assegurar a sua própria proteção. A atuação do agente é unilateral, descurando a manifestação de vontade por parte do titular dos interesses sacrificados, que não pode resistir. Está sujeito à atuação material do agente, enquanto direito potestativo, que tem como causa o perigo de inutilização prática de um dos seus direitos subjetivos. O sujeito passivo en- contra-se, deste modo, vinculado a uma sujeição e a suportar os atos do agente.
O preceituado no art. 336.º do CC deixa claro que a ação direta pode ser exerci- da contra a pessoa ou o património do onerado com a justificativa do correspondente direito que o agente pretende proteger. Ora, no caso da posse, a ação direta pode reconduzir à ação executiva (art. 10.º, n.º 4 do CPC) ou a um procedimento cautelar de garantia da obrigação, como seja o arresto (art. 619.º do CC). Tendo revisto, em outra secção, que a ação direta se exerce face a um estado de necessidade, o agente deve atuar como se fosse intentar uma ação judicial: tendo um título executivo age em ação direta contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor; não tendo título executivo atua contra aquele contra quem intentaria a ação declarativa na presunção de que o sujeito passivo seria condenado e será contra este que pode exercer a ação direta. Em síntese, a ação direta pode ser exercida contra quem o titular do direito pode agir em justiça pública.
Importa agora verificar quem tem legitimidade para agir. Viu-se que o titular do direito pode agir. Essa é a regra geral. No que diz respeito à incapacidade, esta é suprível nos termos do art. 16.º, n.º 1 do CPC, ou seja, por “intermédio dos seus re- presentantes, ou autorizados pelo seu curador, exceto quanto aos atos que possam exercer pessoal e livremente”. Marques da Silva defende, e nós acompanhamo-lo, que não será de admitir a intervenção do representante voluntário no exercício da ação direta (Silva, 1968, p. 68).
A representação voluntária está prevista nos arts. 40.º a 52.º do CPC. Porém, a representação é uma exceção à regra de que devem ser os próprios titulares dos interesses em litígios, ou os seus representantes legais, que devem atuar no processo. Daí que o legislador tenha um elenco das causas e dos recursos onde é obrigatória a constituição de advogado (art. 40.º, n.º 1 do CPC), consagrando lugar a causas em que não é obrigatória a constituição de mandatário (art. 40.º, n.º 3 do CPC). Assim, não nos parece que o representante voluntário tenha legitimidade ativa para exercer a ação direta. O mesmo se aplicará ao gestor de negócios (art. 464.º do CC); pois é a letra do próprio art. 336.º do CC que refere a licitude do recurso à força para realizar ou assegurar “o próprio direito”, devendo excluir-se, por sinopse com os arts. 337 .º e 339.º ambos do CC, a participação de terceiros na ação direta.
Mas caso diferente é a situação de auxiliares do titular do direito. A tutela privada pressupõe que a efetivação do direito se encontra entregue ao próprio titular, que exerce diretamente ex propria auctoritate ex proprio marte ou o faz com auxílio de força privada de que possa dispor. Pode darse o caso de, sozinho, estar em força reduzida para assegurar ou realizar o seu próprio direito. Socorrendo-se de auxiliares que aumentam a força de ação, estes são meros colaboradores do agente na atuação material.
Efeitos da ação direta
De modo sistemático, podemos enunciar efeitos civis e efeitos penais da ação direta, que de sobremaneira importa conhecer. Os efeitos da ação direta podem ser usados como causa de justificação do ato lesivo do direito subjetivo ou interesse juridicamente protegido; mas quando a ação direta é ilícita faz desencadear todos os efeitos dos atos ilícitos. O recurso à força só é lícito, como vimos, com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito. O n.º 2 do art. 336.º do CC apresenta um conjunto de meios lícitos para essa prática. Sem essa causa de justificação estamos perante um conjunto de atos ilícitos.
O Código Civil preceitua, para estes atos, um regime de indemnização ao lesado pelos danos resultantes da violação (art. 483.º do CC). Para que um ato seja ilícito é necessário o cumprimento de todos os pressupostos do ilícito: I) possibilidade de ter agido de modo diverso; II) ausência de causas de justificação; III) lesão de um direito ou interesse juridicamente tutelado. Satisfeitos os requisitos legais para o exercício da ação direta, como indispensabilidade para afastar o prejuízo, a ação direta é legítima, sendo ilegítima a defesa contra ela, não existindo lugar a indemnização.
Ora, sendo os atos praticados no exercício do direito da ação direta ―violência contra as pessoas e contra as coisas― declarados lícitos pelo Código Civil, consi- dera-se a impunibilidade do ponto de vista penal. Ou seja, observados os pressu- postos para o exercício da ação direta fica justificado o facto nos termos dos arts.
31.º, n.º 2, al. c) e 34.º ambos do CP.
Partindo do conceito de posse como um direito de gozo, sem natureza real, a sua defesa está consagrada nos arts. 1276.º a 1286.º do CC. A reflexão imposta neste trabalho procurou concetualizar o instituto da ação direta (actio recta) na defesa da posse. A relevância do assunto é sobremodo importante face: I) à clarificação dos pressupostos de exercício da ação direta; II) à distinção entre ação direta e legítima defesa; III) ao fim e aos efeitos da ação direta; IV) aos meios lícitos de exercício da ação direta; V) aos seus limites; e VI) à capacidade e legitimidade para a ação direta.
Percebemos que quando há interposta resistência ao cumprimento da norma jurídica, a remoção do obstáculo à realização da norma é a caraterística essencial do jurídico, de modo coativo, com o fito da efetivação final da Ordem Jurídica. Para tal, num momento antigo da Humanidade, o titular do direito tinha o animus defendendi com a sua lex privata ex proprio marte. Gradativamente, à medida que as sociedades se tornaram mais organizadas e complexas, o Estado começou a definir os limites de atuação da justiça privada ou a fixar formalismos a que esta deve obe- decer, defendendo e garantindo direitos aos seus titulares. Assim se observa com a defesa da posse, por via extrajudicial, ao tempo das Ordenações Filipinas. A partir da Constituição de 1838 o conteúdo é vertido na definição de que “é lícito a todos os cidadãos resistir a qualquer ordem que infrinja as garantias individuais”, com o Código Civil de Seabra a carrear a possibilidade do possuidor, perturbado ou esbulhado, manter-se por sua própria força e autoridade.
A reflexão conduziu-nos a lex necessitates est em que, num determinado estado de necessidade, se justifica uma conduta que, em outras circunstâncias, seria ilícita. Ora, no caso da defesa da posse, a ação consiste numa reação post-factum, depois de efetuada a violação de um direito, distinguindo-se da legítima defesa que supõe uma agressão atual, iniciada mas não consumada ― ex-ante. Para a existência de ação direta pressupõe-se, então, uma reação do titular do direito a um perigo atual ou eventual de inutilização prática do direito.
Será lícito recorrer à ação direta quando este instituto seja “indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais” (art. 336.º,
n.º 1 do CC), uma vez que o art. 1277.º do CC, in fine, preceitua “recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse”. Como pressupostos da ação direta considera-se a existência de um direito privado que se pretende realizar ou garantir, a indispensabilidade de recurso a este instituto para evitar a inutilização prática do direito subjetivo, a impossibilidade de recorrer atempadamente aos meios coercivos normais e a necessidade de verificação cumulativa de todos os pressupostos.
O fim da ação direta é assegurar ou realizar o próprio direito. O legislador enumerou um conjunto de meios lícitos para o exercício deste instituto (art. 336.º, n.º 2 do CC). Todos os pressupostos para o exercício da ação direta devem ser garantidos uma vez que a atuação, na suposição errónea de os mesmos se verificarem, dá lugar a indemnizar o prejuízo causado, aplicando-se o princípio geral da responsabilidade civil. A ação direta pode concretizar-se mediante vários atos, como, por exemplo, a apropriação, a destruição ou deterioração de uma coisa e ou eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito.
Considerando os facta concludentia, o instituto da ação direta, no exercício da defesa da posse, é, claramente, um caso excecional em que o Estado coloca certos poderes de coação na mão de particulares, para assegurar a realização de um direito tutelado juridicamente por outras formas, quando em regra só são conferidos a au- toridades públicas, tendo, por isso, um caráter de inovador. Torna-se porém ilícita quando se sacrificam interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar a ação direta.
Qualquer sujeito com capacidade de exercício de direitos deverá poder exercer a ação direta, não nos parecendo que o seu representante voluntário tenha legitimidade ativa para a exercer. Perante os pressupostos requeridos para o exercício da ação direta, considera-se que o titular do direito deve munir-se, na sua formação de base para uma cidadania ativa, de algum suporte jurídico e, perante um perigo que faça perecer determinado direito subjetivo, refletir, o melhor que conseguir e no tempo disponível, se esses pressupostos estão, de facto, cumulativamente reunidos, evitando dar lugar a indemnizar o prejuízo causado ao titular do direito sacrificado e, eventualmente, incorrer em algum crime tipificado na lei.
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