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e20194718

Doi:10.22187/rfd2019n47a18

Doctrina


Política e transparência: o segredo como subversão da democracia


Politics and transparency: the secret as a subversion of democracy


Política y transparencia: el secreto como subversión de la democracia



Roberto Bueno

Professor Doutor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB).

Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Ciência Política e Direito Constitucional pelo Centro de Estudos Constitucionais de Madrid (CEC). Pós-Doutor em Filosofia do Direito (UNIVEM). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). ORCID: 0000-0002-2832-6972 Contacto: rbueno_@hotmail.com

Der Gott der Eisen wachsen liess der wollte keine Knechte(1) (Albert Methessel).


Resumo: O objeto do artigo é análise da crise da democracia contemporânea, focando especialmente o problema de atores que agem sob a capa da invisibilidade, estratégia que afeta profundamente as instâncias da democracia. O principal referencial teórico bobbiano utilizado neste texto é a obra “Democrazia e segreto”, que oferece elementos para analisar as limitações impostas às democracias correntes. A partir desta perspectiva analisamos a atuação das forças corrosivas sobre a democracia e as possíveis estratégias para ampliação do círculo libertário das democracias. O artigo propõe a ampliação da compreensão das consequências da interdição por parte das forças políticas da aplicação da categoria transparência ao território do político através da disseminação através da ampliação do segredo na esfera da política, e a conexão destas categorias através de sua exposição como via constitutiva do autoritarismo em consonância com a afirmação de um pensamento teológico.

Palavras-chave: democracia, transparência, política, segredo, autoritarismo, oligarquia.


Abstract: The object of the article is the crisis of contemporary democracy, especially focusing on the problem of visibility that affects the levels of power. The theoretical framework is the work “Democrazia e segreto”, by Norberto Bobbio, the purpose of dialoguing with the liberal socialism of the author is to project essential elements of a political philosophy of democratic-libertarian social-cut. We design on this perspective a bobbian categorization with analytical and normative bias which states the importance of implementing the policy of the categories transparency and truth.

Keywords: Democracy, Transparency, Politics, Secret, Authoritarianism, Oligarchy.


Resumen: El objeto del artículo es un análisis de la crisis de la democracia contemporánea, centrándose especialmente en el problema de los actores que actúan al amparo de la invisibilidad, una estrategia que afecta profundamente las instancias de la democracia. La principal referencia teórica bobbiana utilizada en esta obra es el texto "Democracia y secreto", que ofrece elementos para analizar las limitaciones impuestas a las democracias actuales. Desde esta perspectiva, analizamos la acción de las fuerzas corrosivas sobre la democracia y las posibles estrategias para ampliar el círculo libertario de las democracias. El artículo propone ampliar la comprensión de las consecuencias de la prohibición por parte de las fuerzas políticas de la aplicación de la categoría transparencia al territorio político mediante la difusión a través de la expansión del secreto en la esfera política, y la conexión de estas categorías a través de su exposición como una forma constitutiva del autoritarismo en línea con la afirmación de un pensamiento teológico.

Palabras clave: democracia, transparencia, política, secreto, autoritarismo, oligarquía

Recibido: 20190212 - Aceptado: 20190402

Exposição do problema


O objetivo deste trabalho é contribuir para a análise da relação de tensão entre as instituições da democracia representativa liberal e as poderosas instâncias invisíveis que efetivamente a coordenam desde as sombras operando incisivamente sobre as instituições legitimamente constituídas amparadas no sufrágio. É realizada crítica da reflexão sobre a inserção da elite econômica (e seu
arcana rei œconomicæ) no campo da representação política democrática (e seu arcana potentiæ absconditæ) operante desde o campo da invisibilidade, ação causadora de desequilíbrio no âmbito da política e, sobradamente, da penetração e estabilidade das convicções democráticas populares de fundo sem desconhecer tratar-se de um processo aberto e em curso (Bobbio, 1997, 146), mesmo em face de que a sociedade é algo que os homens não param de (re)construir (Furtado, 1999, 70) segundo modulações insuscetíveis de completa pré-ordenação mesmo em regimes fechados.

Este texto que ao fundo do debate político há uma latente e insolúvel tensão no que concerne a expressão da verdade no campo político mas que, desde o plano democrático-popular requer intervenção moderadora através da ampliação do campo da visibilidade. Desde este campo político libertário há forte demanda pela ampliação do raio de visibilidade das instâncias da política e do poder(2), demanda contraposta aos discursos e retóricas que objetivam a manipulação da opinião pública, segundo função desconstitutiva do cerne das instituições da democracia. Este texto destaca a importância no momento atual de estabelecer reflexão sobre o seu objeto, em especial considerando a presente crise brasileira, fazendo-o sob o referencial da filosofia política progressista e social de Norberto Bobbio.


O bloqueio à transparência e os
arcana: Imperii, potentiæ absconditæ e rei oeconomicæ


Em sua origem os arcana imperii (segredos políticos do império) foram compreendidos como conteúdos que precisavam ser mantidos à distância do olhar e do escrutínio público, pois a finalidade superior era a preservação dos interesses do Estado então confundindo a sua interpretação com o teor do juízo do próprio soberano. Em perspectiva histórica, uma leitura mais acurada do segredo de Estado remete a um conceito de absolutismo de fundo medieval, e a este respeito comenta Kantorowicz (1955, 37) que o segredo de Estado “Es un tardío brote de aquel hibridismo secular-espiritual que, como resultado de las infinitas relaciones entre Iglesia y Estado, puede hallarse en cada uno de los siglos de la Edad Media [...]”. Os segredos do altar e os insondáveis mistérios da divindade foram migrados de seu hibridismo para o unitarismo em sua esfera laica temporal para que com isto cumprissem a finalidade de isolar o poder do acesso por parte do público contestador e que, assim, o poder temporal pudesse operar com a força idêntica a da esfera teológica, ordenando de forma perfeita a hierarquia e obtendo a submissão inconteste de seus súditos(3):

Os momentos sucessivos aos da cultura medieval e absolutista foram marcados pelo esforço filosófico Iluminista em sentido inverso, seccionador da forte união entre Estado e Igreja, mas com a constituição do primeiro sob a orientação dos atributos de poder típicos da Igreja. Os seus impenetráveis mistérios e hierarquias alimentavam a ação política de autoridades eclesiásticas operantes sob referenciais dogmáticos, revelando-se eficientes a ponto de serem emuladas pelo campo secularizado do político quando a cultura iluminista já fazia sentir os seus efeitos no campo das relações políticas. Este cenário representou a migração das características do corpus mysticum da Igreja para as esferas de poder temporal do Estado, o corpus morale et politicum (Kantorowicz, 1955, 57), e é através desta colonização do temporal pelo espiritual que o mistério e o dogma se posicionaram e consolidaram no universo político demarcando este campo e, deste modo, o próprio miolo do moderno Estado secular foi levado a operar sob o manto do segredo próprio do misticismo teológico.

Quando já era entrado o primeiro quarto do século XX Carl Schmitt destacava que os arcana imperii eram absolutamente necessários para a consecução dos propósitos de um Estado absolutista, e neste sentido afirmava que “[...] arcana, [são] segredos técnico-políticos, de fato tão necessários ao absolutismo como conaturais a toda política, assim como o segredo dos negócios e das finanças é próprio da vida econômica baseada na propriedade privada e na competição” (Schmitt, 2010, 48)(4). Quando Schmitt propõe esta aproximação íntima entre os segredos técnico-políticos do Estado à política e a sua conexão taxativa com a forma de organização absolutista do Estado, percebe-se que está a indicar que é inexorável a existência e, portanto, a interferência dos arcana imperii para normalizar a realidade política do Estado. Schmitt aponta o segredo do poder como uma realidade insuperável, posto que prática indispensável a um exercício voltado a segurança do Estado, e nisto assinala certa similaridade com uma visão teológica da política na qual a potência do poder de Deus no mundo preserva o mistério para, deste modo, interferir com autoridade irrebatível em todos os assuntos humanos, sem que, à razão destes, seja dado rebater ou se opor de alguma forma àquele irresistível e arrebatador poder transcendente.

Na época moderna o conceito de arcana imperii foi deslocado e mobilizado predominantemente para o cumprimento de finalidades bastante distintas daquelas inicialmente cumpridas de alegada proteção aos assuntos de Estado. O conceito transcendeu as fronteiras da retórica do interesse público do Estado e, já modificado, adentrou na esfera puramente política da vida político-parlamentar para ser instrumentalizada para o cumprimento de fins alheios ao interesse público. Este deslocamento conceitual obedeceu o interesse oculto de seus manipuladores, e neste sentido Lucas Martín (1990, 131) indica que o conceito de segredo está composto ao menos por três variáveis, a saber, (a) o não mostrar, o não comunicar ou (b) o silêncio, o rechaço à pretensão de conhecer, o não responder ou negar-se a mostrar, ou, ainda, (c) o dissimulo. O segredo de que tratamos não é do tipo que revela utilidade para preservar a saúde do Estado, mas sim de outra ordem, a saber, é ocultação deliberada de informações cujo objetivo é o de solapar os fundamentos e as instituições democráticas através de articulações subterrâneas ao poder legítimo, desenho de uma democracia aparente que apenas está a disfarçar o que Bovero (2013, 45) qualifica ser formas de autocracia eletiva. Esta é a perspectiva antidemocrática por antonomásia cuja crítica em Bobbio parte da sua declarada importância concedida a visibilidade do poder, valor que é incompatível com as pretensões de segredo, que na esfera pública tão somente pode ser admitido como exceção (Lucas Martin, 1990, 134).

A aplicação do segredo à segmentos específicos das engrenagens da política mantém de seu referencial teórico histórico de partida a preocupação com a proteção de certas áreas sobre conteúdos aos quais não é dado o conhecimento, segundo determinação de seus atores operantes no controle, e o fazem segundo a lógica do desestímulo à articulação da autonomia política. Esta crítica ao segredo não é compartilhada pelo Estado absolutista referido por Schmitt, senão que é tipologia de Estado que se contrapõe ao universo político democrático que prioriza o campo da visibilidade. Assim, conforme destaca Lucas Martins (1990, 140), a incompatibilidade da democracia com os segredos reside em que estes últimos “[...] escapen a la ley, que no estén regulados jurídicamente”, pois o que caracteriza a democracia e a própria atividade política não é a ausência de segredos, senão, precisamente, que seja de domínio público “[...] quién, cómo y por qué cabe restringir el acceso al conocimiento y que la decisión sobre todo esto [...] queda en manos del Pueblo a través de sus representantes” (Lucas Martin, 1990, 140). Descrever esta forma de inserção do segredo na política é muito instrutivo.

A leitura do conservadorismo autoritário moderno sobre o tema aponta para que cada vez mais amplos nichos de poder precisam ser preservados da percepção e perscrutação pública, dada a falta de convicção absoluta da elite nos termos de um projeto ilustrado que aponta para um cenário em que os homens devem exercer a razão pública e o povo a autonomia política. Este empenho bloqueador ao projeto ilustrado se evidencia, por exemplo, no trato reservado a linguagem empregada(5) e os potenciais bloqueios políticos(6), mas também na exaltação e preferência no uso da voz passiva à clareza da voz ativa, e também através da ocultação de informações e pelo sentido do processo de discussão e de tomada de decisões em gabinetes. Este conjunto de opções bloqueadoras do projeto político ilustrado cumpre a dupla função solapadora da democracia que distancia o parlamento de uma função libertário-republicana ao tempo em que configura o desenho mínimo da constituição do moderno estado autoritário, cujas vias de realização o distanciam das versões absolutistas de exercício de poder que a história conheceu.

A migração conceitual dos arcana imperii para o que classificamos aqui como arcana potentiae absconditæ (segredos de um poder escondido) ocorreu sob a égide da ocultação dos reais móveis dos poderosos em novos tempos em que a justificativa do poder precisava ser trazida à público. A moderna forma de Estado e da política retira a coroa do soberano e a coloca no povo, a quem o primeiro precisa render contas, mas mesmo sem coroa todavia segue a antiga lógica do poder, seguindo a operar como se a tivesse e como se as justificativas não fossem necessárias.

Os arcana potentiae absconditæ tem se revelado nas sociedades democráticas ocidentais tão indissociáveis da política e da condução dos assuntos de Estado quanto os arcana imperii que foram tradicionalmente descritos pela literatura especializada. De forma análoga aos arcana imperii, a elite financeira busca ocultar-se sob a expressão democrática, constitucional e institucional-representativa do poder político, tendo construído sucessivas substituições históricas de organizações do poder(7), e agora dentro de um sistema representativo edifica outra categoria operativa para tutelar a concretização de seus interesses, a saber, os arcana rei œconomicæ. De forma análoga aos arcana imperii citados por Schmitt, os arcana rei œconomicæ mostram alta operatividade no mundo dos negócios e das finanças, agindo em franca tutela dos arcana potentiæ absconditæ no campo do político que deveria realizar as aspirações dos reais titulares do poder de nossas democracias.

A democracia construída no cenário dos Estados modernos tem em sua base a noção de participação política(8), mas é precisamente este um conceito frente ao qual a elite financeira que controla o poder se mostra refratária in extremis. Tal resistência implica na busca por mecanismos que desloquem o eixo do poder (popular) sem macular o próprio instrumental que se encontra formal e juridicamente disponível para tanto(9). As ocultações e os segredos vêm a funcionar como recursos intrassistêmicos para manter o corpo ao tempo em que corroer a problema alma do sistema democrático. Neste sentido convém recordar a característica identificada por Canetti (1995, 290) de que o segredo opera sempre em um só corpo, quer o consideremos coletiva ou individualmente, e nesta identificação é que se percebe que, em realidade, o corpo econômico e o corpo político são apenas um em seus desdobramentos práticos, embora dotados de dupla face, pois é assim que o discurso da democracia precisa ser construído pela elite financeira, pois é apenas desde este ângulo e jamais de qualquer outro que a esfera pública precisa vê-los.

A elite financeira realiza este movimento de apresentar como uno o que é plural, de apresentar como unificado um conjunto de funções democráticas quando, em verdade, está sub-repticiamente a resguardar os seus interesses através da concretização dos planos operativos no nível da conjunção dos arcana rei œconomicæ e dos arcana potentiæ absconditæ. Assim, tal como em uma encenação de marionetes em que ao público apenas é dado observar o jogo dos fantoches mas não a manipulação deles, é em espaço similar que os atores econômicos e políticos revelam estar em absoluta e irresoluta união, sendo que a primeira esfera de segredos (econômicos) é constituída no núcleo duro da elite financeira e que se revela determinante da segunda esfera de segredos (políticos), seguindo um movimento inverso a própria percepção das entranhas da democracia.

Segundo esta construção da esfera política em que as forças econômicas emergem como determinantes ao passo em que a transparência não é concebida como categoria reguladora, sob tal cenário é que se cumprem as condições ideais para o poder absoluto, pois é justamente sob a obscuridade que o poder sem limites recrudesce. Ele desfruta das favoráveis circunstâncias de ausência de controles eficazes, que são peça nevrálgica da democracia que sem ele não sobrevive (Sartori, 1988, 528), e para que assim ela encontre condições de sobrevivência (Lucas Martin, 1990, 135), sendo indispensável que os poderes do Estado atuem tendo a transparência como sua guia (Delgado Gil, 2005, 3). É notável como as democracias ocidentais de média ou alta voltagem constituem espaço em que o discurso e a retórica do poder hodierno controlado pela elite financeira oculta pretende apresentar como superada a prática da política, resumindo-a a um circuito de funções técnico-científicas.

A subsunção das esferas de poder político às elites financeiras não são exatamente uma novidade histórica, senão as formas de sua aparição histórica é que foram variáveis. Trata-se de categoria recorrente e observável ao longo da história, tanto na Idade Média em seus momentos posteriores à queda do Império Romano(10) (Ganz, 2002, 4) quanto no mais recente cenário pré-republicano brasileiro, período cujo cenário político foi descrito por Florestan Fernandes (2005, 119-139) como objeto de controle pela elite econômica, então situada no espaço rural.

O cenário da esfera política foi alvo de diversas formas de controle por uma capa de atores econômicos cuja forma de atuação foi variável, mas que em qualquer de suas formas, expressas ou não, foram consolidadas e bem descritas em seu funcionamento em diversos momentos históricos. Deriva desta realidade a construção de um cenário político de alta aplicação da força das elites financeiras, principalmente nas sociedades de alta especialização e complexidade, nas quais as formas de exercício do domínio precisam ser mascaradas. Os atores centrais desta empresa estão cientes de que o sistema que lhes favorece não pode operar sem que seja realizado o prévio deslocamento do eixo do fazer político legitimado pelo voto para a titularidade do campo econômico, mas também estão absolutamente cientes de que este precisa ser um movimento sutil e bem oculto, e para tanto elaboram o campo dos arcana rei œconomicæ.

Esta função de mascaramento requer a constituição e intervenção de homens de gabinete desconhecidos e de outros conhecidos que precisam operar em frente às câmeras e nas cédulas eleitorais, mas que, em verdade, operam como prepostos que nem sempre conhecem aos seus senhores e patrões, senão que são apenas um pequeno elo de uma cadeia de comando obscura mas cuja lógica é absolutamente clara, embora oculta(11). Neste espaço executivo das ordens da cadeira de comando triunfam incógnitos os experts em seu incansável trabalho sob régia paga. Independentes de responsabilidade eleitoral, são impassíveis de contestação e respondem tão somente aos seus patrões do mundo financeiro, retoricamente calçados que se encontram na dogmática hermética da economia que procura sustentar a absoluta confiabilidade de suas opções mundanas no processo de ancoragem do fazer científico.

Em que pese seja indubitável o impacto prático do papel exercido pelos especialistas em qualquer tipologia de organização social, e não menos nas democráticas, é também claro que certas calibragens sobre a amplitude de suas funções são indispensáveis. É relevante especificar qual seja o grau de domínio sobre a esfera da política que se pretende outorgar a estes tecnoburocratas(12) contraditória com a estrutura política democrática(13), pois tal proteção se justifica na medida em que esta esfera política é a única devidamente constituída pelo sufrágio e também a única referência eficiente para legitimar uma organização do Estado com pretensões democráticas.14 Desconhecer ao apenas relevar a centralidade desta ponderação é incidir nas circunstâncias desconstitutivas da ordem política que a tecnoburocracia de corte eminentemente elitista age no sentido de ampliar, supostamente voltada a concretização de uma ordem mais sofisticada.

A densidade da competência da tecnoburocracia proposta pela elite conservadora dispõe de temas que demandam a cobertura de segredo, quer seja entendido este enquanto ocultação plena de informações quer enquanto mascaramento ideológico dos temas em tratamento. Convergindo com Schmitt sobre existir uma dimensão de temas que precisam ser analisados na esfera de segredos técnico-políticos, deriva daí a necessidade crucial de cuidados para que a ampliação desmesurada desta órbita de competências da tecnoburocracia não redunde na constituição de um Estado autoritário moderno, cuja operacionalização profunda é de corte eminentemente fascista(15), da tipologia que foi o alvo da crítica bobbiana em seu momento ao indicar a necessidade de que a alternativa socialista que apoiava se mantivesse aliada ao liberalismo político para enfrentar a sua versão conservadora sempre disposta, ao menos na Itália, a aliar-se com o neofascismo (Bobbio, 1997, 146). Portanto, a manutenção de perspectivas de uma sociedade democrático-libertário-social demanda uma calibragem dosificada e bastante modesta dos temas que mereceriam tal inserção na órbita do segredo político ao tempo em que o estabelecimento de linhas públicas de acesso e fiscalização.


Transparência como democracia: autoritarismo e economia


Assumimos a leitura de Bobbio de que a articulação da transparência com o conceito de democracia é essencial para as suas possibilidades de afirmação e sobrevivência, e neste sentido há conexão com o argumento de Delgado Gil
(2005, 3) de que, por princípio, “[...] cualquier actuación por parte de alguno de los órganos del Estado que no pueda ser conocida por los ciudadanos atentaría contra su propio fundamento”. Mas se este argumento pode ser assumido à partida, por outro lado, é necessário matizá-lo e assumir que a lógica de funcionamento do Estado democrático de direito deve manter rincões de acesso restrito ao público, tanto por motivos de razão de Estado e cuidado com o interesse estratégico de implementação de políticas públicas como também por força de decisões políticas em matéria de relações internacionais assim como, soa óbvio, também por motivos de segurança.

Ainda quando devamos assumir este como um princípio e até mesmo convirjamos com o otimismo expresso por Bobbio quanto às consequências da consolidação da transparência, a sua estratégia não e devidamente contrapesada pelas concretas razões de temor relativamente aos desdobramentos prometeicos da potencialização de sua crença nos efeitos redentores da transparência. Sem embargo, é certo que a sua percepção sobre os efeitos da transparência para a democracia é absolutamente correta(16), tanto por razões na seção anterior como por outras razões que precisariam ser explicitadas, e um destes aspectos é o paralelismo estatal, sendo prioritário superar com alta aplicação de tensão política popular a dualidade entre transparência e opacidade que permite a existência do Estado dual, pois a democracia depende da configuração de uma tipologia estatal em que o visível seja também aquilo que constitui o núcleo duro da lógica de funcionamento de suas instituições. A superação da dualidade entre transparência e opacidade não deve ser compreendida como indicativo do necessário perecimento de forma absoluta da opacidade para que a transparência possa surtir os seus benévolos efeitos para o florescimento da democracia.

É importante destacar que o autoritarismo conservador da elite financeira desconhece as vias da política em afirmação do econômico, isolando a democracia como uma categoria política que poderá ser recepcionada na medida em que mostrar funcionalidade para os fins superiores da maximização dos altos interesses do mundo das finanças. É possível observar, sem embargo, que não existe uma natural discrepância entre o mundo da política e o mundo das finanças, senão que avançam na concretude das relações sociais e políticas em razão inversa. Assim, quando as categorias ínsitas ao mundo das finanças avançam, o mundo das instituições democráticas retrocede, mas quando esta última avança, tocará ao primeiro necessariamente retroceder (Bobbio, 2013, 36).

Este jogo de sucessivos avanços dos interesses do mundo das finanças aparenta eventuais retrocessos em favor das instituições democráticas, mas que não passa do nível da aparência promovida e maximizada enganosamente por atores que lançam mão de chaves analítico-ideológicas que constroem para o mister de encobrimento do real. É possível sugerir que a democracia ou o autoritarismo encontram terreno fértil para avançar na razão direta em que o poder, os atores e as instituições sejam mais visíveis (democracia) ou menos visíveis (autoritarismo) e que, portanto, os segredos políticos desfrutem de um estatuto especial, sendo cristalino é que quando a visibilidade passa a ser uma mera excepcionalidade no sistema, o que há é um sistema fechado, autoritário ou autocrático (Bobbio, 2013, 36).

A razão da superioridade qualitativa da organização democrática sobre a autoritária é o movimento de um regime tendente a afirmação das liberdades e projetos de vida na mais alta densidade possível, reconhecida como de intrínseca valia para a existência humana (Sen, 2006, 77), sendo a dignidade do homem a pedra fundamental a partir da qual pensar e erigir uma democracia(17). A transparência é uma categoria-chave que precisa desfrutar de estatuto absolutamente privilegiado e protegido para a consolidação deste valor político libertário e das expectativas de realização de uma sociedade democrático-libertária-social. Ao expor o poder a transparência é categoria que opera de forma resoluta contra o vírus autoritário, solapador das melhores e mais vivas essências da democracia por alimentar as forças que configuram o duplo Estado ―bastante presente nas democracias contemporâneas― em cujo âmago se encontra a sobreposição da economia à política através da operacionalização dos arcana rei œconomicæ.

A transparência intervém como elemento desarticulador das expectativas de hiperdimensionamento do segredo para além das mínimas órbitas que o republicanismo democrático pode aceitar a sua incidência. A maximização da esfera de segredos em detrimento da transparência potencializa as forças obscuras que projetam o sequestro do público por uma casta permanente e bem assentada para além da espera política, cujas pretensões são de permanecer em seu exercício, à revelia dos titulares do poder político escolhidos pelas urnas. A transparência opera de forma eficaz para desarticular uma profunda e bem enraizada rede de atores com alta influência na determinação dos rumos das políticas públicas implementadas pelos poderes constituídos que não respondam aos interesses do poder político constitutivo, e é por esta razão que as elites financeiras precisam conter demandas em favor da expansão do nível de transparência da política e das instituições(18).

A “secretização” da esfera política interdita o núcleo do fazer democrático em seu âmago, e isto se deve ao fato de inviabilizar o exercício da razão pública ao constranger o acesso ao seu objeto. O segredo em matéria política deve ser compreendido como a chave de bloqueio a visualização do político e de seus condutores, estratégia eficiente para consolidar e magnificar as próprias instâncias do poder e do establishment, aspirante a perpetuar a cultura produzida pela elite financeira através de seu denso campo magnético de atração de capas populares através da reconfiguração ideológica travestida de genuína reprodução cultural. O bloqueio ao campo do político funciona eficazmente como interdição ao uso da razão pública ao inviabilizar uma tipologia de decisões políticas orientadas pela parametrização conceitual democrática.

O esforço por bloquear o acesso ao núcleo de informações políticas é um dos vértices do argumento conservador autoritário para quem a mais sofisticada reflexão é a única que deve pautar os assuntos públicos e a sua condução. É desconsiderado o papel da esfera pública de decisões cujo compartilhamento lhe empresta potencialmente maior legitimidade e eficácia, ao passo em que, por si só, constitui uma semente promissora da qualidade da democracia em questão. Desentendido desta realidade, o conservadorismo autoritário reputa que esta via de decisões é de qualidade inferior pelo só fato de não serem tomadas por técnicos, argumento que desconsidera o aspecto político democrático por excelência, pois para tais atores é a lógica maximizadora de resultados e da utilidade econômica o que necessariamente deve permear as relações públicas e as decisões políticas. A aplicação da lógica da radicalização da utilidade e da economia na esfera da política configura uma circunstância que transcende a essência das expectativas de funcionamento da própria política, e nisto assiste razão na crítica de Bobbio (2015, 305) de que a “[...] utilidade não era toda a vida do espírito”(19).

As decisões políticas são tratadas pelo campo conservador autoritário exclusivamente pelos padrões de maior ou menor eficiência, orientando a reflexão e as decisões políticas pelo critério de superior ou inferior produtividade e de retorno financeiro. O teor do que o conservadorismo autoritário considera ser eficiência em matéria política está desconectado da consideração sobre se as sus decisões podem ser ser até mesmo burdamente “menos eficientes” do ponto de vista da promoção de fins sociais. A eficiência derivada das estratégias operantes sob o signo do segredo discrepa da finalidade de aglutinar forças para perseguir os fins sociais e coletivos porque é incapaz de mobilizar expectativas, pois apenas concentra atenções na realização de fins privados.

A democracia percorre caminho inverso ao projeto social do conservadorismo autoritário, pois ao tempo em que propugna meios mais eficientes do ponto de vista social para a consecução de fins econômicos, de forma conjugada, nunca os sobrepõe aos próprios meios de realização, pois os valida tão somente quando amplamente legitimados pela esfera da representação política, a despeito de alegações de superioridade e eficiência das decisões porventura tomadas ao arrepio desta variável política. O democrata pressupõe a não aplicação e tampouco a sobreposição da lógica econômico-empresarial ao funcionamento político da democracia e nem de suas relações sociais ou trabalhistas(20), que não suporta a exacerbação de funções de maximização sem prejudicar profundamente os fins sociais e de ordem política com os quais a democracia está comprometida.

A opção pelo segredo em detrimento da transparência nos temas políticos e econômicos serve para mistificar e dourar o autoritarismo enquanto mero e inofensivo tecnoburocratismo, apresentado como estritamente científico em suas escolhas fundamentais na esfera das políticas públicas. Há uma prática disseminada sobre a necessidade de que o segredo seja elevado a níveis demasiado abrangentes nos parlamentos, justamente no espaço em que as relações deveriam estar destacadamente pautadas pela publicidade, mas que é fenômeno que possui uma explicação tão clara quanto evidente, a respeito do que Delgado Gil (2005, 3) chama a atenção para a aplicação do princípio da publicidade em diversas instâncias do Estado: “Tanto el poder legislativo, como el judicial como el ejecutivo han de desarrollar sus actuaciones de acuerdo con el principio de transparencia”(21). Trata-se do descaso político com uma versão séria da democracia, do desleixo com empregar meios adequados para não apenas mantê-la como fortalecê-la(22), e se explica pelo fato de que as cadeiras dos representantes políticos legitimamente eleitos tem apenas funcionado como escritório de execução das tarefas determinadas no espaço dos mais sofisticados e luxuosos gabinetes em que a democracia não entra e nem o voto é lembrado, senão enquanto mero objeto de manipulações.

O tom crítico da falta de transparência da democracia representativa conecta antípodas teóricos como Bobbio e Schmitt, que apontam para alternativas políticas absolutamente diversas a partir da crítica inicial ao parlamento. Ontem, como hoje, são os gabinetes sem identificação em locais alheios a influência pública em que operam e decidem os magnatas das finanças sobre o futuro das políticas públicas e da política econômica, eis que o “humor” do mercado é quem dá o alerta público sobre os rumos que um Governo pode ou não tomar. Esta é uma variável que obviamente se consolida quando os governos de plantão são, assumidamente, proclives a uma concepção de organização social em que o mercado é quem deve dar as cartas, em detrimento dos poderes do Estado, movimento que Furtado (1999, 80) reconhece concretizar uma grave ilusão. Os poderes do Estado deveriam estar comprometidos com os fins democráticos sob os quais o seu exercício foi encomendado, enquanto pela cartilha neoliberal tais poderes deveriam ser realocados para o setor privado, poderes estatais colocados na posição de mero instrumento para a realização dos fins da elite financeira que exerce o real controle da vida política e das instituições, ainda quando o faça pela via de “secretização”, pois se trata de fins antagônicos e irreconciliáveis com um equilibrado sistema de relações sociais(23).

É desde a esfera do mundo empresarial e alheia ao mundo parlamentar que a lógica do mundo político é concebida. Ela é alimentada pela força motriz do interesse da máxima reprodução de benefícios, sejam em espécie ou não, mas sempre orientados publicamente pela retórica da maximização de interesses públicos. Sem embargo, esta orientação não ultrapassa o terreno do discurso público e está desvinculada de seu real propósito maximizador das instâncias do privado, e o só fato de concentrar as decisões em um consistente grupo de tecnoburocratas e não apenas a execução de projetos deliberados na esfera pública em que a política habita é o indefectível sinal de que a democracia começa a sucumbir, e todavia mais intensamente em face da hermética blindagem destes tecnoburocratas de quaisquer interferências da esfera política. É desde este espaço do mundo dos negócios que é estabelecida a arquitetura, a estética e a retórica do publicizável e o teor dos interesses que precisam permanecer em absoluto segredo(24) ―relacionada à saúde da democracia(25)― sob pena de que não seja possível obter a mínima legitimação pública necessária para um regime cuja orientação básica não é de ordem democrática e popular.

A invasão da órbita parlamentar por uma lógica estranha ao seu funcionamento perverte o debate público que do ponto de vista de sua estrutura deveria ocupar o centro das atenções. Este movimento colonizador foi sendo realizada paulatinamente, e em alguns momentos é possível que sem a devida percepção, a ponto de não serem constatáveis significativas resistências da opinião pública ao fenômeno, para o qual ainda não atentou, posto que o próprio sistema alimenta a falsa crença de que o remédio idôneo para os males da democracia é a participação em novos pleitos, e que pela via de melhor opção sufragista a democracia logrará regenerar a sua vitalidade. Nada mais falso, nada mais comprometedor da própria democracia do que instigar os indivíduos a crer nesta falsa promessa, cujo favor popular tende a esgotar-se ao negar o valor da própria democracia que requer manter acessa a via para o enfrentamento aberto de resistência à violências impostas pelo establishment, pois a resignação é o caminho expresso para a servidão da alma (Ostrogorski, 2008, 58).

O movimento de desadensar a esfera da política e de adensamento das funções outorgadas aos tecnoburocratas ocorre de forma silenciosa, segundo curso ordinário por um poder que aspira a ação de forma oculta. A abstinência política popular reveladora de certo fastio e certeza de que o maquinário democrático se move por si só ensejou profundo processo de desalojamento do exercício da razão política, cujas consequências mais evidentes são o solapamento dos institutos e das práticas que vivificam as atividades parlamentares que, em resumidas contas, alimentam diretamente a descrença popular nos fundamentos da democracia. Esta descrença é arma letal para a manutenção da democracia, eis que ao ser atingida em cheio pela radicalização dos movimentos antidemocráticos já não encontra na cidadania quem a defenda. Assim, cedo ou tarde, em face da inércia para resistir e conter o avanço das forças que operam desde a invisibilidade a democracia certamente soçobrará(26).


Turvações e obscuridades como instrumentos do domínio ou da democracia como exercício da razão pública


Os movimentos de obscurecimento e ocultação,
lato sensu, interditam um dos pré-requisitos de cujo exercício continuado a democracia depende visceralmente, qual seja, o exercício da razão pública. A título exemplificativo, Bobbio recordou seus tempos de ingressante no curso jurídico e ali comprovou a suposição de Benedetto Croce acerca dos baixos serviços prestados por intelectuais e professores aos governantes de plantão, baixo serviço que consistia em “[...] procurar convencer-nos que o Estado fascista não era uma ditadura, mas um Estado de direito, a continuação, ou melhor, o aperfeiçoamento do Estado monárquico constitucional instaurado pelo estatuto albertino” (Bobbio, 2015, 275). Este é exemplo histórico da cooptação de intelectuais realizada por um regime político fechado, disposto a obstaculizar o exercício da razão pública através do comprometimento da qualidade das informações de que dispõe os seus atores. Neste sentido, portanto, o entorpecimento da interpretação do real é um importante instrumento de interdição das condições de possibilidade para o exercício da razão pública e, por conseguinte, da própria experiência concreta da democracia, circunstância que, infelizmente, antanho, como hoje, se repete.

O efetivo exercício da razão pública é alvo de interdição precisamente devido ao seu alto potencial de críticas ao poder instaurado e de criação de novas descrições de mundo, e este é um risco que as poderosas oligarquias e os seus servidores não pretendem correr. A resistência ao exercício da razão pública tem sua origem bem constituída na consolidação da teologia aplicada à política, estratégia que pode ser bem exemplificada historicamente nas palavras de Jaime I(27), endereçadas ao público nos seguintes termos: “No es legal discutir aquello que concierne al secreto del poder del rey [...] que se mantuviera dentro de sus limites, porque no era legal disputar sobre la Prerrogativa absoluta de la corona [...]” (apud Kantorowicz, 1955, 43). Afirmado o terreno de absoluto domínio da política e fechando a passagem para o exercício da razão pública questionadora do soberano, Jaime I todavia recorre a uma outra esfera de interdição todavia mais eficaz, a saber, a teológica, para afirmar que “Es ateo y constituye una blasfemia discutir lo que puede hacer Dios... Del mismo modo, es presunción y gran desdén en un súbdito, discutir lo que puede hacer un rey [...]”. (apud Kantorowicz, 1955, 43).

Este movimento histórico de Jaime I recolhido por Kantorowicz é denotativo de uma estratégia que visa desconectar os titulares do poder de seu real titular em uma democracia bem assentada, a saber, o povo. A estratégia discursiva de Jaime I visa deslegitimar e torna ilícito qualquer movimento que tenha em perspectiva acessar a chave do poder ou, ainda mais, criminalizá-la. O soberano deveria permanecer inacessível em suas decisões, e esta é uma leitura política de clara vinculação teológica que foi migrada para o conservadorismo autoritário. Malgrado o movimento laicizante na esfera política do Ocidente tenha transcorrido em larga medida com a disseminação da cultura ilustrada, resta por examinar que a desvinculação entre o trono e o cetro teológico não ocorreu por completo. Ainda quando o esforço do Iluminismo viesse no sentido de erigir autonomia e que da população se exigisse menos fé e mais esclarecimento, eis que a condução da política pelas elites financeiras deu curso ao modus operandi anterior, alimentando ações políticas conduzidas pela guia de dogmas e menos pelo recurso à própria razão.

Esta nova etapa política em que o Iluminismo desembarca o homem passa a requerer dele novas vias bastante ativas para que possam ser concretizados os fundamentos da democracia. O pré-requisito entendido como seu elemento básico da operacionalização da democracia em grandes massas é um conjunto de certas virtudes cognitivas, acerca das quais as sociedades modernas ocidentais não tem sido cuidadosas para promover o seu mais adequado desenvolvimento, em especial no que concerne ao cuidado com a informação e as mídias que lhe servem de suporte. A este respeito analisa Sartori (2003, 68) que os indivíduos das sociedades democráticas contemporâneas são portadores de “[...] una pobreza asombrosa y desalentadora”, algo que coloca em xeque as condições da própria democracia, posto que “La respuesta de un gobierno al sufrimiento de su gente depende en buena medida de la presión que se ejerce sobre él” (Sen, 2006, 66), e este pode ser descrito como um “pálido simulacro” do conjunto de valores e instituições de que se pretende dotar uma democracia (d´Arcais, 2013, 14) ainda mesmo segundo uma modesta funcionalidade.

Sob tal cenário o cumprimento do pré-requisito da transparência destacado por Bobbio se revelaria uma veleidade sempre e quando a razão pública não encontre as condições concretas de mínimos nutricionais. A transparência, por si só, se revelaria insuficiente na medida em que é capaz de operar positivamente somente quando acoplada a própria (in)formação e um grau de desenvolvimento cognitivo dos indivíduos ainda que modesto(28), muito embora isto tampouco deva ser compreendido como garantia efetiva de resultados políticos satisfatórios do ponto de vista do asseguramento das liberdades que conjuntamente com a democracia(29) formam valores em si mesmos das sociedades humanas (Sen, 2006, 65). A autonomia reflexiva do coletivo precisa ser interpretada, contudo, como um vetor decisivamente indutor de uma viva experiência democrática.

O movimento de abafamento da razão pública começa pelo mais apropriado locus. Há uma luta surda dentro dos parlamentos que opõe os interesses particulares de grupos muito poderosos cuja reverberação é nacional e, não raro, de impactação duríssima sobre os mais caros interesses populares. O que está realmente em causa é a compreensão e pública aceitação do discurso da supremacia dos interesses corporativos em sua pior acepção, qual seja, a de que não apenas estão autorizados a proceder à defesa de seus interesses como ainda bem mais, para agir no sentido da nefasta exclusão do interesse das camadas populares através de toda uma complexa cadeia de manobras que são realizadas à distância e desconhecimento público, cujo campo de domínio da legalidade pode ser colocado em xeque sem possibilidades de fiscalização. Neste sentido compartilhamos a crítica de Bobbio (2000, 63) ao sustentar que “Criticável não é a representação orgânica enquanto tal, mas a representação orgânica transportada para fora dos limites que lhe são próprios”, sendo esta transposição é o que, desafortunadamente, está absolutamente dado na realidade das democracias ocidentais.

A crise disseminada nas democracias ocidentais é devida parcialmente a grave densidade da opacidade que perpassa horizontalmente as suas instituições, tornando-se capaz de compromete o âmago da cultura e da cultura política através da qual as sociedades forjam as suas identidades. Este movimento oculta o alto impacto negativo da interdição aos sujeitos de direito para que efetivamente ocupem a esfera pública(30) e, assim, ao desmobilizar o exercício da razão pública, a consequência natural é o eficiente solapamento da democracia e, formal e substancialmente, dos direitos humanos que habitam o seu núcleo duro e cujo caráter universalista implica a coordenação com a defesa dos trabalhadores contra o financismo (Touraine, 1998, 73). A falta de percepção popular do real é elemento que tensiona a força em prol do autoritarismo, pois há uma historiografia política da construção de regimes antidemocráticos e totalitários segundo a qual a regra da política e o tom da administração dos assuntos públicos é a densificação da opacidade e o agravamento do segredo.

O território político de opacidade que constitui as democracias ocidentais contemporâneas é dinamizador dos naturais conflitos, posto que potencializa desconfianças e radicaliza expectativas de ações deletérias ao interesse público. O conflito é elemento dissociativo que precisa ser entendido como uma variável conceitual definidora da própria democracia, mas inversamente ao que o senso comum indica, ela é representativa da riqueza da democracia (Sartori, 2003, 57), embora intervenha e opere como força ambígua, ou seja, que lhe fortalece apenas enquanto age constantemente tensionando, esgarçando e testando os limites da democracia, de suas instituições e de seus atores.

O contínuo tensionamento alimenta conflitos já existentes e gera ainda outros, contrapondo-se com as expectativas políticas naïve de um mundo natural primitivo, mas cujos esforços por perseguir tem fortes raízes na inspiração teológica. O cenário é de um equilíbrio difícil entre as forças populares que aspiram a otimização dos conflitos mas todavia permanecendo dentro do campo de debates e embates que a democracia supõe e que são os nutrientes de seu dinamismo típico e, por outro lado, as forças operantes desde a esfera dos arcana rei œconomicæ, que são descomprometidas com os valores da democracia para mais além da mera conveniência histórica e que por isto atuam no sentido de instaurar um falso sentimento de pacificação institucional pela via da colonização ideológica.

Os atores sociais avaliam a cena sob considerável distância, e nesta perspectiva a sua intervência é prejudicada. A expectativa de construir o futuro eludindo os seus mais fundados temores de que o tensionamento recrudesça em seu desfavor sob a forma da queda na economia com repercussão direta no nível de emprego e da massa salarial é avaliação continuamente disseminada pelos atores que conduzem os arcana rei œconomicæ. Ao realizar tais sinalizações públicas os esforços destes atores não apontam convergência teleológica para a funcionalidade da dimensão democrático-representativa que inspira o anseio popular, senão para via oposta em que os seus interesses elitistas sejam realizados. A retórica do exercício do poder para além da possibilidade de fiscalização da esfera pública cidadã é, portanto, o espectro de vilipêndio que ronda a representação política das democracias ocidentais, posto que são forças alheias às populares, fortes dilaceradoras do calço e firme alicerce da democracia.


O triunfo dos
arcana rei oeconomicæ


Em sua função operativa os
arcana rei oeconomicæ desconsideram valores centrais da democracia, e o exemplo-mor é o de que a cessão de poderes políticos não implica seu controle e subjugação a partir dos referenciais de saberes técnicos supostamente superiores ao fazer político. A legitimação política e democrática está descolada desta perspectiva de radicalização do saber técnico-científico, de sorte que o exercício do governo democrático precisa estar comprometido com obedecer aos estritos limites legais, mas também, e quiçá principalmente, aqueles impostos pelas exigências públicas oriundas do próprio seio da vida política em sua dimensão popular e que nem sempre se encontram abrangidos pelo cinturão da legalidade, cenário que eventualmente se encontra ancorado em demandas por maior eficiência sistêmica e econômica não raro em contradição com os fundamentos empíricos de uma democracia popular(31).

A lógica que subjaz a operacionalidade dos arcana rei oeconomicæ pressupõe a concentração em alguns poucos focos do poder de coordenar as ações dos demais, e desatende por convicção e princípio a oferta de respostas a questão central sobre se o governo é efetivamente desempenhado em níveis de conformidade com as pretensões conceituais de maximizar a exploração das vias de autogoverno em uma democracia representativa. A pretensão conservadora autoritária de corte fascista volta o exercício do poder ao puro domínio sobre os demais, desconectada da pretensão democrática de exercício do poder de modo aberto e límpido ―como sugere Bobbio ser essencial para uma democracia (ver Bueno, 2006) ―, ocultando ao máximo os instrumentos de que se valem as elites no poder.

Bobbio esteve atento a projeção de poderosas forças ocultas sobre o cenário político, e para tanto propôs a transparência em socorro das instituições componentes da democracia, que poderia operar no sentido kantiano de conter reciprocamente as tendências egoístas dos indivíduos de sorte a configurar um espaço público republicano mais virtuoso (Kant, 1989, 146)(32). Em Bobbio um princípio capaz de operar de forma similar para a constituição do espaço público democrático é o da transparência, identificando nela o princípio fundamental para o Estado democrático, ou seja, que para isto são determinantes o “[...] principio de publicidad, es decir, de poder visible” (Bobbio, 2013, 75). Para Bobbio a publicidade é o elemento que verdadeiramente distingue um Estado democrático de um Estado organizado de forma autocrática (Ib.) cuja operacionalidade depende de amplíssima gama e dura preservação de segredos.

A concepção de Estado que concede prioridade à organização democrática precisa estar disposta para obstaculizar as forças voluntaristas que procuram os espaços opacos da vida política para conduzir os assuntos públicos, pois desde este locus invisível ocorre a mobilização de forças com alto potencial de destruição não apenas das instituições democráticas como das próprias convicções públicas acerca da eficácia de suas instituições. Sem embargo, persiste o embate neste jogo de luzes e sombras no qual Sennett (2001, 219) avisava que o poder tirânico sempre mantém a pretensão de mostrar-se como perfeitamente visível, e por fazer crê-lo é que logra exalar um misto que é de alta periculosidade composto por confiança e medo a quem se disponha a enfrentar o poder. Portanto, este se transforma em um dos desafios centrais da política, qual seja, retirar o falso manto que oculta a visão do poder tirânico, vale dizer, descobri-lo, retirar o véu que embaça a sua mais essencial função política.

Em Bobbio (2013; 2000) a ligação entre visibilidade e democracia é muito claramente testada em alguns de seus mais importantes textos políticos, e é destas linhas que provém a certeira advertência de que a defesa da democracia implica diretamente a ação em apoio “[...] de aquellos que nunca han sucumbido a la tentación de hundirse en el subsuelo para evitar ser reconocidos” (Bobbio, 2013, 38). Esta estratégia é importante devido ao necessário reconhecimento de que o poder seduz ainda mais intensa e decididamente aqueles que mantêm, ao menos, certo desapreço pelo regime das liberdades. O seu movimento lógico é o de ocultar a si e as suas ações, algo que, por si só, elude à superior função democrática, pois é na superfície o local em que o jogo democrático pode ser desenvolvido. É deste espaço que os atores dispõem para atuar e para apresentar as suas razões, e deste modo é que podem cumprir o desiderato ilustrado de desenvolver e livremente aplicar a sua razão pública, que depende tanto de acesso a autoridade quanto às informações, pois apenas deste modo é possível moderar as tensões existentes no âmago da democracia entre as deliberações históricas e as maiorias que se formam a cada momento(33) contando ainda com severas distorções para que se configurem(34).


Política, verdade e democracia: a detração pelos arcana potentiæ absconditæ


A personalidade dos homens que compõe os estratos mais altos do mundo financeiro não pode ser fácil e perfeitamente delineável como, de resto, a de nenhum outro estrato, mas orientado por algum esforço neste sentido, recordamos com Florestan Fernandes o perfil do senhorio rural paulistano nas condições da primeira metade do século XIX. Seu espírito foi então descrito como “[...] duros aventureiros, que repetiam em moldes renovados os episódios da era da conquista. Invadiam terras, subjugavam ou destruíam pessoas, esmagavam obstáculos e colhiam avidamente os frutos [...]” (Fernandes, 2005, 148-149). Pois não é muito diverso o espírito dos homens dominantes nas mais altas esferas do mundo das finanças e que articulam o que viemos denominando aqui como arcana rei oeconomicæ, mas é também muito certo e necessário que este mesmo espírito não transpire e de forma alguma seja percebido sobre os destinatários de seu abrasivo poder.

Quando este perfil humano exerce o poder eis que a política, a verdade e a democracia mantêm relações bastante tensas e, não infrequentemente, contraditórias. Não são elementos que contem com vida própria, e são conduzidas segundo os interesses limitados pelo grupo que domina através da delimitação do círculo dos arcana rei oeconomicæ que ganham o mundo através das condições postas pelos delegados políticos que constroem o semicírculo dos arcana potentiæ absconditæ. Trata-se de um conjunto de forças que opera projetando profundo e insuperável tensionamento entre a política, a verdade e a democracia. Elas conduzem estes elementos até o limite da oposição, adentrando firme e irresolutamente no território acidentado da ocultação de fatos e do direcionamento de informações e canalização interessada de sua ideologia inspiradora através do controle dos meios de comunicação e das instituições de ensino.

A tensão democrática nas sociedades ocidentais em que prevalecem os grupos financeiros é alvo da interessada mediação por parte destes ao organizar o sistema de mediação da retórica ideológica e da demagogia no âmbito da política. É constituído um poder político cuja forja é falsamente articulada em modelação democrática, dadas as condições em que o sistema opera. A titularidade do poder é delegada à esfera da política que vem a ser cooptada pelos altos grupos financeiros que realmente organiza os arcana potentiae absconditæ que vem a operar no mundo das relações políticas. A condução dos temas políticos no plano empírico se dá sob a capa da representação política democrática, mas temperada em suas ações por diversos tipos de violência.

A estratégia ocultadora do poder se mostra tanto mais atuante quanto mais um determinado sistema político e os seus governantes guardam consigo o espírito do senhor rural desenhado por Florestan Fernandes típico da eclosão da revolução burguesa paulista, e por construir um sistema que funciona violentamente é que precisa resguardá-lo das práticas da transparência que Bobbio recomenda para o fortalecimento da democracia, da qual ela é um de seus elementos fulcrais e inseparáveis. É preciso ocultar a face real do sistema que estabelece linhas continuadas de violência, e por isto a transparência democrática apontada por Bobbio não pode servir como tampouco a sua recomendação de que os governantes não podem se furtar às limitações legais impostas às suas ações.

A elite marcada pela lógica radicalizada do homo œconomicus, velho e vigoroso lupus hobbesiano isolado nas práticas primitivo-darwinistas do turbocapitalismo que se porta ao completo arrepio dos interesses políticos populares, revelando-se até aqui avassalador o poder que as grandes corporações transnacionais detém primazia sobre a política interna dos Estados e, neste sentido, sobre as tentativas de dar curso ao processo de consolidação das democracias. A propósito desta desconexão, Sen (2006, 112) chama a atenção para que o capitalismo global “[...] está mucho más preocupado por la expansión de las relaciones de mercado que por el establecimiento de la democracia, la educación elemental o las oportunidades sociales de los menos favorecidos”, e isto descortina um perigoso horizonte descrito por d´Arcais (2013, 90) como potencialmente funesto para a democracia sempre e quando o capitalismo não acate a lógica democrática.

Há igualmente uma tensão todavia não resolvida em favor da política no que concerne à necessidade de controles democráticos e dos propósitos de desenvolvimento humano,35 mas que ao evitá-los incide adota conduta política da direção dos assuntos de Estado sem quaisquer limites, controles ou restrições, voluntarismo configurador das vias abertas e bem pavimentadas para o duto autoritarismo.

A perspectiva de Bobbio é direta sobre a necessidade do controle público sobre o poder para que o arranjo político possa ser qualificado como democrático. Mas como realizar o equilíbrio entre o espírito tosco e aventureiro do homo œconomicus descrito por Florestan Fernandes, que subjuga e destrói os seus concidadãos e, por outro lado, as perspectivas de afirmação do sujeito de direito(36), que facilmente pode ser entendido como uma grande invenção da modernidade. Neste sentido, se realmente, como diz Zarka (1997, 9) “A questão da invenção do sujeito de direito é importante porque ela engaja um aspecto fundamental da compreensão da modernidade”, mas sobre isto resta o peso da indefectível irrealização de suas promessas, e sob a perpetração da antropologia de Florestan Fernandes impede a retirada da fantasia e do véu que encobre a invenção conceitual-chave da modernidade para que ela possa realizar-se satisfatoriamente.

A ojeriza do homo œconomicus ao que represente afirmação dos princípios da autonomia política humana projeta o cerne da crise do sujeito de direito, algo que precisa ser lido com recurso a Kurz (2010, 88), para quem “[...] o sujeito não é nada mais que o portador consciente [...] do movimento de valorização destituído de sujeito”. Ao passo que é indubitável a interdição do exercício de seus direitos por parte do sujeito, é duvidosa a consciência destes limites intrassistêmicos presentes em nível oculto no discurso da retórica cultural dominante. É forçoso admitir que o foco do sujeito de direito nas sociedades ocidentais encontra-se no direito privado, quiçá no consumerista e que a criação da categoria do sujeito de direito precisa ser compreendida quanto aos seus resultados em termos denegadores da transformação do homem em real sujeito no direito a partir da concretização de uma teoria dos direitos do homem fundamentados na autonomia moral(37) já integrados em diversos documentos constitucionais ocidentais, deslocando o projeto de realização da cidadania da esfera formal para o plano material.

A afirmação das condições de domínio por parte de uma esfera face real do sistema que estabelece linhas continuadas de violência precisa ser apaziguada, e o conceito de sujeito de direito disposto nas sociedades democráticas de mercado contemporâneas exerce este papel com relativa eficiência(38). Os homens são guindados à posição de pretensos condutores do processo histórico, devidamente calçados no plano formal em garantias jurídicas(39), mas que, em verdade, é concretamente alheado de reais fontes do controle, decisão e positivação do direito pelos sucessores dos senhores rurais, sejam eles típicos do feudalismo europeu ou do período (neo)colonial brasileiro. O projeto da modernidade remanesce incompleto também neste aspecto, pois o sujeito de direito está à deriva em um complexo político dinâmico, obscuro e invisível, cujos meandros lhe permanecem de todo estranhos, inacessíveis quando não mesmo absolutamente incompreensíveis.

O projeto da modernidade requer sujeitos históricos e o vigor das democracias depende da ação destes sujeitos em conexão com a categoria da publicidade do fazer político. Compartilhamos o desenho da sociedade política que tem como alvo maior o reconhecimento formal e concretização material da igual relevância moral entre os seus membros. Deriva disto a imperiosidade de que ela seja projetada para o plano fático através da positivação jurídica, sendo operado o translado de uma concepção axiológica do justo e do bem para o campo da imperatividade normativa.

Este panorama é a condição prévia para a apropriação do conteúdo político por parte dos sujeitos cujos direitos políticos apenas se concretizam quando dispõe de instrumentos para a ação. Neste sentido Bobbio (2013, 27) recorda que a publicidade é uma categoria típica de governo de tipologia democrática, e que é a sua aplicação aos fatos da política e das instituições que viabiliza a qualificação da democracia na medida em que colabora para a visualização de ações e procedimentos, que de permanecerem no campo da invisibilidade conformariam a condição essencial para inviabilizar a intervenção e a influência nos assuntos públicos que a democracia requer.


Considerações finais


A “publicização” da esfera da vida política encontra seu antípoda na “secretização”, torná-la visível em suas ações bem como calçar as justificativas de suas decisões políticas em processos compartilhados e compatíveis com as esferas públicas populares de constituição do querer é a consolidação da reafirmação da qualificação da vocação democrática de uma determinada sociedade.

A aspiração democrática depende de que os processos e as instituições não estejam balizadas pelo agir oculto ou secreto, que solapa a democracia. Para evitar a derrocada do regime das liberdades populares é necessário que, como diz Sennett (2001, 222) “[...] os que estão em posições de comando sejam explícitos a seu próprio respeito: mostrem com clareza o que podem e o que não podem fazer”, mas que também coordenem as suas ações com as forças dinâmicas populares da sociedade civil, e que não sejam as oligarquias a ocupar a posição de proeminência nas decisões políticas.

Quando o poder é enfeixado nas mãos de uma inabordável e infalível figura, ou grupo, que desconsidera a noção de transparência e visibilidade de ações, processos públicos e na tomada de decisões políticas e administrativas, então, o que finalmente sobressai é o autoritarismo. A visibilidade do poder é essencial em um sistema democrático-social, posto ser esta a única via para que os sujeitos políticos populares exerçam o controle sobre o poder. Conhecer a razão pública e participar de sua elaboração, direta ou indiretamente, é pré-condição para que a força dos arcana rei oeconomicæ não encontre as condições ideais de domínio e a tendência de proliferação do absolutismo no terreno abandonado por instituições de controle mesmo quando prevaleça a formalização das liberdades(40).

As aspirações perfeccionistas como a absoluta transparência e os arroubos pela realização da absoluta justiça podem realizar o fim diametralmente oposto ao perseguido. A este respeito recordamos a máxima “Fiat justitia, et pereat mundus”, máxima orientadora de uma perspectiva redentora que apenas os homens com mente teológica podem almejar, mas não os atores políticos e jurídicos responsáveis e convictos do valor da democracia. A transparência deve ser a regra, mas quando a luminosidade é levada a níveis absolutos também ela pode cegar e colocar a própria vida social a perder e, então, é chegado o momento de perceber a necessidade de utilizar lentes que minimizem o impacto da luz sem menoscabar a sua centralidade.

Para além dos termos de uma crítica sobre uma eventual leitura naïvité da política realizada nestas linhas que demandam o aprofundamento do conceito bobbiano de transparência, recordamos Bloom (2012, 127) ao dizer que “A alegação essencial do sublime é que o homem pode, no sentimento e na linguagem, transcender o humano”. É esta transcendência dos limites ponderados já no projeto do Iluminismo, prévia orientação balanceada entre o romantismo e o pessimismo que transcende o horizonte do projeto ético naïve(41), oscilante em movimento pendular entre ambos, mas temperada pela ousadia que acreditamos merecer o investimento político popular.

Sob tal contexto preocupante de consolidação do domínio invisível de estratos altamente favorecidos da população é preciso recordar uma atualíssima citação de Bobbio (2015, 275) na qual alertava aos intelectuais italianos de seu momento que

Numa sociedade democrática em formação, como a nossa, os intelectuais não podem ficar de lado, como acontece numa sociedade funcional na qual cada coisa caminha para o seu rumo, ou numa sociedade totalitária na qual não há alternativa a ou não participar ou colaborar.

No cenário que desenhamos neste trabalho o papel dos intelectuais é relevante, sobretudo em sociedades em que a democracia é todavia uma aspiração possível, sobretudo quando, ontem como hoje, “Não estamos mais, felizmente, em tempos de regime totalitário, mas também não estamos, infelizmente, numa sociedade democrática estavelmente constituída” (Bobbio, 2015, 275), papel cuja relevância não deve ser compreendida como reedição de um radicalismo utópico próprio para regenerar os homens e sociedades (ver García de Enterría, 1994, 21), pois a democracia “[...] não se dirige mais para um porvir radioso, mas para uma reconstrução de um espaço de vida pessoal e de mediações políticas e sociais que o protegem” (Touraine, 1998, 104). Esta é uma quadra histórica em que a covardia intelectual cobrará ainda mais alto preço da posteridade, pois o valor de assegurar as liberdades ainda será consideravelmente menor do que aquele que terá de ser pago para restaurá-la algum dia.

Com Bobbio concluímos que o tempo presente é, indefectível e irresolutamente, um momento temperado para a ação em defesa de nossas instituições, de nossos valores democráticos mas, sobretudo, de nossa Constituição, e para fazê-lo, apenas empregando os melhores esforços contra quaisquer violentos golpes de qualquer gênero que a ela pretendam impor aqueles que desde a invisibilidade pretendem aplicar projetos de poder construídos na esfera da invisibilidade dos gabinetes de altos poderes que o controle popular não alcança e em que os seus interesses não são contemplados.


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Sen, A. (2006). El valor de la democracia. Madrid: El Viejo Topo.

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Zarka, Y. C. (1997). A invenção do sujeito de direito. Filosofia Política. Nova Série, 1, 9-29.

Notas:

1Livre tradução: “O Deus que criou o ferro não quer escravos”.

2Movimentos políticos deste gênero foram extremamente ativos não apenas no Ocidente na primeira metade desta década, a exemplo do ocorrido em Espanha (com a agremiação política “Podemos”, por exemplo), entre outros países que também experimentaram diversas manifestações contra a política tradicional e movimentos de rebelião de rua questionadores do próprio sistema político.

3Esta junção forçada do poder espiritual ao poder temporal conduziu a uma percepção ética da política cujos desdobramentos puderam constituir cenas de alta violência com o escopo de realizar o reino de Deus na terra, rompendo, deste modo, a dualidade entre política e moral historicamente posta nas relações entre Estado e Igreja.

4Segundo o texto original: “Arcana gehören, politisch-tecnische Geheimnisse, die in der Tat für den Absolutismus ebenso notwendig sind, wie Geschäfts- und Betriebsgeheimnisse für ein auf Privateigentum und Konkurrenz beruhendes Wirtschaftleben”.

5A linguagem pode operar como eficiente instrumento para encobrir o que não pode ser visto, para obscurecer o que não pode ser lido, para tangenciar o que não pode ser dito e, por conseguinte, não deve ser claramente percebido segundo uma leitura do fazer político realizado pelos responsáveis políticos.

6Sobre as manobras do político no terreno da linguagem com a finalidade de ocultar o domínio, observa Bobbio (2013, p. 57) que “El lenguaje esotérico y misterioso no se adecua a la asamblea de representantes que son elegidos periódicamente por el pueblo, y por ello responsables ante los electores [...]”. A linguagem é apenas um dos instrumentos utilizados para ocultar o fazer político da visão pública, as razões e reais fundamentos para as decisões que são tomadas no âmbito da vida pública.

7Há uma função inconclusa e perniciosa na absorção da dimensão teológica por parte do temporal, tanto quanto o modelo de um Estado liberal em substituição ao Estado absolutista, ao qual simplesmente sucedeu no tempo e no espaço, mas mantendo características essenciais das formas de controle e exercício velado de domínio.

8Ostrogorski (2008, p. 36) chama a atenção para a importância de que os cidadãos estejam dispostos a todo momento realizar intervenções na esfera pública, demonstrar espírito ativo, dispostos a dar seu tempo e os seus esforços de sorte a conter os processos de desdemocratização. A este respeito, ver Balibar, (2013).

9A este respeito é importante ressaltar a análise de Sen (2006, p. 82) de que há um movimento concreto por parte do segmento social empobrecido em face dos ataques aos seus direitos, e neste sentido afirma que trata-se de ações observáveis empiricamente.

10Ganz (2002, p. 4) descreve um cenário em que a riqueza privada era determinante para o exercício do poder político, tanto quanto a história das instituições jurídicas de diversos países ocidentais é pródiga em apresentar o direito ao voto em sua modalidade censitária ou pecuniário, cujo requisito é a riqueza, o que bem indica o alto controle exercido pelas elites econômicas sobre as regras jurídicas.

11É de extrema relevância considerar que as democracias podem em algum momento restringir-se a um mero cenário de fundo instrumentalizado para a manipulação das liberdades. Neste sentido Sen (2006, p. 73) chama a atenção para que “[...] unas elecciones pueden resultar una falacia si se producen en un marco donde las diferentes partes no cuenten con la oportunidad adecuada de presentar sus puntos de vista y sus programas, o si el electorado no goza de libertad para informarse y considerar los planteamientos de los contendientes”.

12Lucas Martín (1990, p. 141) destaca que o “[...] problema de la relación entre democracia y secreto no parece consistir tanto en la existencia de secretos cuanto en la extensión en la vida pública del discurso burocrático que tiene en el monopolio y preferencia por el secreto uno de sus rasgos característicos”.

13A este aspecto é esclarecedora a posição de Sartori (1988, p. 526) sobre a ruptura entre a aspiração democrática e a maximização de uma sociedade organizada racionalmente. No primeiro caso, a sociedade estará perpassada por pontuais disfuncionalidades, enquanto no segundo caso, ela o estará pelo desenho de um quadro construído racionalmente por especialistas que, por definição, responderão de forma bastante modesta à esfera política, que lhes confiará in extremis, algo que Sartori (1988, p. 527) desaconselha, sugerindo a opção pelo ponto médio entre o governo dos não-especialistas e o dos especialistas (1988, p. 528).

14A esfera política é a única capaz de sustentar o soerguimento de projeto político popular que cumpra o propósito anunciado por Borón (2010, p. 63) de que “Na América Latina, “governar bem” significa governar com os pobres e contra dos ricos e os poderosos estabelecidos”, problema eminentemente político, pois os problemas sociais estão ligados às estruturas de poder (cf. FURTADO, 1999, p. 81).

15Ontem, como hoje, o fascismo vem sendo alvo de um processo já identificado por Bobbio (2007, p. 61) em seu momento, a saber, de tentativas de apresentação como um “[...] novo modo de conceber a política”, estratégia cuja percepção é de extrema importância precisamente para focar um dos pontos essenciais da colaboração filosófico-política de Bobbio que é justamente o embate contra a cultura fascista.

16A percepção da importância da transparência já não é um problema tão agudo em algumas instâncias da vida pública quanto naquelas instâncias do poder político que são absolutamente refratários ao controle.

17Ostrogorski (2008, p. 58) chama atenção para o eterno combate humano contra a liberdade e a dignidade, sendo este um movimento realizado pelos controladores do poder que, época após época, adotam a estratégia de alterar a sua aparência para confirmar a máxima de Il Gattopardo, do romance de Tomaso di Lampedusa, mudar para manter as coisas como sempre foram. Assim sobrevém, uma e outra vez, as tiranias, isto sim, sob novos disfarces.

18O caráter opaco destas relações de poder viabilizam um modelo de capitalismo que Borón (2010, p. 73) descreve como “[...] cada vez mais globalizado tem mudado, em um sentido desfavorável para os interesses das classes e camadas populares, o cenário das lutas de classes”, ampliação de inserção transnacional cujo processo não é novo (cf. Furtado, 1999, p. 86).

19Esta percepção da maior amplitude da vida do espírito que habita o homem relativamente às possibilidades da utilidade e da economia expõe a radicalidade do vazio a que a aplicação de ambas na sociedade como critérios pautadores das políticas públicas expõe o conjunto humano.

20Viemos trabalhando neste texto a ideia de que o Estado democrático de direito discrepa do mercado, e de que a lógica funcionamento deste não cumpre com os fins político-democráticos do primeiro. A este respeito d´Arcais (2013, p. 89) chama a atenção para que tal tipologia de Estado “[...] no puede asemejarse a la empresa capitalista [...]”, e o que é mais, a “[...] democracia no puede dejar de cuestionar el despotismo empresarial [...]”.

21Delgado Gil (2005, p. 3) todavia chama a atenção de que “En este sentido, las sesiones del Congreso de los Diputados y las del Senado son, en principio, públicas. También las actuaciones judiciales son, como regla general, públicas; además, las sentencias serán siempre motivadas y se pronunciarán en audiencia pública. Asimismo, cualquier persona tiene derecho a ser informada de la acusación que se formule contra él. También la Administración también está sujeta al principio de publicidad”.

22A escassez de movimentos e estratégias no sentido de compreender e dar os passos necessários para cuidar da manutenção da democracia implica assumir concretamente os riscos de perdê-la em sua íntegra, sendo os esforços por reconstituí-las sempre superiores aos necessários para resguardá-la.

23É notável a interdição entre os interesses da elite financeira transnacional e a estrutura de sociedades que visam o equilíbrio social, a respeito do que comenta Castronovo (2001, p. 104) que “[...] alle argomentazioni degli apostoli di un liberalismo radicale [...] incompatibili altrove con un sistema di relazioni sociali e di politiche redistributive fortemente radicato”, em suma, é época de erupção de forças orientadas a promover a ruptura com os mais suaves vestígios do Welfare State.

24Em face do ângulo da proteção dos interesses dos controladores do poder oculto é que vem a ser determinados os acessos e as informações que podem e que não podem ser veiculadas, as prioridades políticas, o rumo da política econômica e do mundo dos direitos. A transparência em Bobbio é vetor relevante para a consolidação da democracia nas democracias ocidentais, e dada a sua escassez, leva a questionar o seu estado de saúde.

25Certamente, em grande parte este estado de saúde depende menos do trabalho do analista acerca da descrição do definhamento das instituições democráticas que do grau de percepção pública da intensidade e profundidade deste definhamento. Está em causa menos o real do que a percepção que dele tem a população, e ela é absolutamente intermediada pela mídia em sua ação de formadora da opinião pública sobre o estado político.

26Não há espaço aqui para realizar minuciosa análise do direito de resistência, que deve ser pensado desde a tradição liberal lockiana até a sua mediação francesa na declaração de direitos girondina de 1793, que previa tal direito aos indivíduos colocados em posição de opressão, sob uma lei que lhes violasse os direitos naturais, civis ou políticos.

27Antes reinando na Escócia como Jaime VI, foi sob o nome de Jaime I (1566-1625) que reinou nas coroas unificadas da Inglaterra e Irlanda a partir de 1603 até o seu falecimento, embora mantendo cada um dos respectivos reinos o seu ordenamento jurídico e as suas estruturas parlamentares e judiciais.

28É questão central a proposta por Sartori (2003, p. 68) sobre os reais motivos que explicariam o desinteresse em intervir sobre esta amplitude potente da ignorância pública mesmo quando considerada a condição do cidadão médio. O que está em causa é uma pergunta central para a sobrevivência do sistema ou de algum que pensemos projetar em vias sofisticadoras da democracia.

29Não é possível desenvolver neste espaço o conceito de democracia, suas restrições e as críticas às pretensões de concebê-la segundo uma noção de amplitude universal.

30Para uma leitura do sujeito de direito, ver Zarka, (1997, p. 9-29).

31A sistêmica ineficiência econômica contrapõe-se e solapa a democracia quando demonstra a sua disfuncionalidade para os fins populares. Neste sentido argumenta Sen (2006, p. 81) que “[...] el papel protector de la democracia resulta especialmente importante para los pobres [...] también lo es para todos aquellos que son expulsados hacia los niveles más bajos de la escala económica durante las crisis financieras”.

32Neste aspecto Kant (1989, p. 147) é bastante pragmático ao estilo de Montesquieu, pois não faz referência ao aperfeiçoamento moral do homem, senão ao trabalho compensado com certos instrumentos institucionais capazes de manipular as suas debilidades morais em prol da cooperação coletiva e benefício público.

33Importa mencionar o forte elemento de ceticismo quanto a real existência e funcionamento de um modelo político calçado na vontade das maiorias e os limites impostos pelos valores do Estado democrático de direito, que para Bobbio (2015, p. 340) representou historicamente uma conquista fundada na garantia dos direitos de liberdade.

34Não raro as maiorias parlamentares derivam de uma falsa formação dadas as manipulações políticas e jurídicas às quais o Estado democrático se encontra exposto. Há profundos vícios que distorcem o sistema representativo em democracias como a brasileira em que alguém sem votos chega a deter mandato parlamentar.

35A respeito da incompatibilidade deste modelo de exacerbamento das forças do capital aqui reputado como fáscio-pós-neoliberalismo financista compartilhamos a interpretação de Borón (2010, p. 72) de que o desenvolvimento exige subordinar o despotismo dos mercados assim como dos oligopólios e do imperialismo, mas também apontando o caminho para o bom governo a partir da contenção destas forças.

36Para uma análise histórica e conceitual ver GARCÍA DE ENTERRÍA, (1994).

37Importa considerar a análise de Habermas (1997, p. 127), para quem estes direitos dos homens que se encontram fundamentados em sua autonomia moral “[...] só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos”, e esta autonomia é o alvo de (re)construções históricas a considerar segundo conceito de democracia entendida como processo aberto, tanto no plano interno da política estatal como em suas relações internacionais.

38Não raro esta condição de eficiência é elevada a níveis estratosféricos, ao que se aduz o argumento de tratar-se de ponto final da história, a esta altura apresentando aspirações planetárias, embora sustentemos que transitamos do momento neoliberal para adentrar fortemente na época do fáscio-pós-neoliberalismo financista (ver Bueno, 2018), movimento precedido pelo trânsito do liberalismo ao neoliberalismo que estaria marcado por um homem que se conduz exclusivamente pelo cálculo econômico (cf. Balibar, 2013, p. 167).

39Compartilhamos com Bobbio (2015, p. 366) a crítica acerca dos avanços do Estado liberal, particularmente de que teria permanecido estacionado no plano da estrita formalidade, o que o leva a sustentar que “A verdadeira liberdade não consiste na possibilidade abstrata de fazer, mas no poder concreto. Livre não é aquele que tem um direito abstrato sem o poder de exercê-lo, mas aquele que além do direito tem também o poder de exercício”.

40A este respeito é importante a reflexão de Balibar (2013, p. 171) de que sob o regime das liberdades é possível estabelecer um eficiente regime de controle e domínio dos indivíduos, ou seja, é possível controlar os indivíduos neoliberais através de suas liberdades.

41Sugere García de Enterría (1994, p. 20) que o projeto iluminista carregava em seu âmago nada menos do que “Se pretendía, nada más y nada menos, rectificar la historia entera de la humanidad, fundar un orden político y social completamente nuevo, capaz de establecer una nueva etapa de la trágica evolución humana y de asegurar para el futuro una felicidad segura e inmarchitable”, sendo útil este preciso desenho para tangenciar as fatais armadilhas de tão elevada pretensão é a alternativa para proteção dos avanços civilizatórios alcançados pelas vias democráticas.