O Naturalismo e o Direito: uma análise teórica dos institutos jurídicos presentes no romance «A carne», de Júlio Ribeiro
O Naturalismo e o Direito: uma análise teórica dos institutos jurídicos presentes no romance «A carne», de Júlio Ribeiro
Tito
Lívio Cabral Renovato Silva
Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) - Campus I
Resumo: Através dos estudos do fenômeno jurídico abordado nos textos literários, este trabalho visa analisar o romance «A carne», do escritor Júlio Ribeiro e publicado no ano de 1888, obra esta que retrata a estética da escola literária do Naturalismo e que causou polêmica na época em que foi publicada. Analisaremos o romance com base em teorias literárias e nas construções teóricas da relação entre Direito e Literatura, para estudar os institutos jurídicos narrados e discutidos em situações concretas, a exemplo do divórcio, que prejudicaram os personagens desse romance, devido à falta de uma legislação que regulamentasse o assunto, na transição do Império para a República.
Palavras-chave: direito e literatura; naturalismo; brasil império
Abstract: Through studies of the legal phenomenon addressed in literary texts, this work aims to analyze the novel “A carne” by Julio Ribeiro writer and published in the year 1888, this work that depicts the esthetics of the literary school of naturalism and that caused controversy at the time it was published. Analyze the novel based on literary theories and theoretical constructions of the relationship between Law and Literature, to study the legal institutions narrated and discussed in specific situations, such as divorce, which damaged the characters of this novel because of the lack of legislation would regulate the matter, in the transition from Empire to Republic.
Keywords: law and literature; naturalism; brazil empire
Para a compreensão de um determinado ordenamento jurídico em determinada época, a simples leitura do texto normativo que estava em vigor torna-se inviável. Com o estudo em conjunto da teoria literária e da teoria do direito, possibilita-se ter uma visão mais abrangente do fenômeno jurídico e de seus efeitos na sociedade, através do movimento intitulado «Direito e Literatura». Através da narrativa literária pode-se compreender o Direito por outros canais de interpretação, e, no nosso caso, através da interpretação literária do romance. Iremos estudar as questões controvertidas do ordenamento jurídico do Império, além de fazer uma comparação, através de uma análise histórica, entre a legislação imperial, baseada na Constituição de 1824, e o vigente ordenamento jurídico fundamentado na Constituição de 1988. Para uma análise dos anseios humanos em relação a uma ordem jurídica que garantisse os direitos inerentes à condição de pessoa humana, principalmente de cunho civil, em meio a uma época em que o pensamento positivista estava em ascensão e desenvolvimento, nada melhor do que estudar um romance «A carne», do escritor mineiro Júlio Ribeiro, escrito na vigência das escolas literárias do Realismo e Naturalismo. A partir desse estudo, podemos revelar como a Literatura pode ser um canal de resistência às opressões da sociedade em relação a questões de foro íntimo e que contrastam com certos valores que as elites brasileiras adotavam em pleno Brasil do final do século XIX.
Realismo, Naturalismo e a obra de Júlio Ribeiro
O
romance «A carne», foi publicado no ano de 1888, ano em
que fora promulgada a Lei Áurea. Escrito pelo mineiro Júlio
César Ribeiro Vaughan, natural de Sabará, então
província de Minas Gerais 10 de abril de 1845, data de
nascimento do escritor. Era filho de um norte-americano e de uma
professora. Com poucos recursos financeiros e sendo autodidata,
aprendeu diversas línguas e tornou-se professor no curso anexo
da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital
da província de São Paulo. (Iannone, C. A., 2014).
Além
de gramático e tradutor, foi jornalista em vários
periódicos na província de São Paulo. Faleceu
aos 45 anos, vitimado por uma tuberculose, no ano de 1890. Deixou
dois romances escritos: «O Padre Belchior de Pontes»,
publicado entre 1876 e 1877 e «A carne», tema de nossa
discussão. (Iannone, C. A., 2014). O romance causou polêmica
na época em que foi publicado, por tratar da paixão
entre uma moça solteira e herdeira de uma grande fortuna e um
homem maduro e casado na França e que não vive com a
esposa, filho de um coronel do interior paulista. Devido ao seu teor,
o romance tornou-se alvo de várias críticas dos
historiadores da literatura da época e de membros da sociedade
brasileira da época. Nessa perspectiva, Júlio Ribeiro
trata da naturalidade das paixões humanas, que muitas vezes
são criticadas e mau vistas pela sociedade brasileira do final
do século XIX. (Iannone, C. A., 2014). Ele dedica sua obra ao
«príncipe» do Naturalismo, o francês Émile
Zola, em uma carta dedicatória, no início do livro. O
Realismo no Brasil tem seu marco no Brasil com a publicação
de «Memórias Póstumas de Brás Cubas»,
no ano de 1881, escrito pelo mestre Machado de Assis. O precursor do
Naturalismo no Brasil foi o escritor maranhense Aluísio
Azevedo, quando escreveu o romance «O mulato», publicado
em 1881, que trata do preconceito racial que sofre o personagem
Raimundo da Silva, mulato que regressa de Coimbra formado em Direito,
para receber a herança de seu pai, e, ao passar um tempo na
casa de seu tio em São Luís, capital da província
do Maranhão, apaixona-se pela prima Ana. Segundo Alfredo Bosi,
em relação ao momento em que surge a escola do
Naturalismo:
Entretanto,
é sempre válido dizer que as vicissitudes que pontuaram
a ascensão da burguesia durante o século XIX foram
rasgando os véus idealizantes que ainda envolviam a ficção
romântica. Desnudam-se as mazelas da vida pública e os
contrastes da vida íntima; e buscam-se para ambas causas
naturais (raça, clima, temperamento) ou culturais (meio,
educação) que lhes reduzem de muito a área de
liberdade. (Bosi, A., 1997, 169).
Em seu «Dicionário de Termos Literários», Massaud Moisés diz o seguinte à respeito dos escritores ligados ao Naturalismo:
Os naturalistas, ressaltando antes a ação transformadora da obra de arte que o seu aparato formal, procuravam ter uma visão mais científica dos ingredientes romanescos: acreditavam cegamente na herança como fator condicionante, mais do que o meio e a conjuntura, que forneceriam as circunstâncias para a irrupção das taras genéticas. (...) Os naturalistas criam que a deliquescência do organismo social tem origem no estatuto político e moral vigente e, sobretudo, nas taras hereditárias. De onde convocarem para dentro dos romances exemplares patológicos de toda espécie, incluindo as teratologias hospitalares ou as nauseantes deformidades físicas ou psíquicas. A doença de que padecem os heróis (ou melhor, anti-heróis) é orgânica, além de moral ou situacional (...).» (Moisés, M., 2004, 356-357).
Em relação a estético do romance que estamos a analisar, Massaud Moisés (2004, 370) diz que «foi também naturalista de escola, mais talvez por amor da sua novidade e voga que por sincera simpatia com ela, Júlio Ribeiro, no seu único romance dessa fórmula, A carne (S. Paulo, 1888)». A escola literária pretendia analisar os anseios da natureza humana de forma científica. O Naturalismo busca descrever as situações mais introspectivas do indivíduo, seus pensamentos acerca das convenções sociais, a partir de seu instinto natural. Os escritores adeptos queriam mudar o mundo através da análise científica da natureza humana. Por isso, ao lado dos escritores ligados ao Realismo, criticavam a hipocrisia e as instituições jurídicas e políticas de sua época, tal como faz Júlio Ribeiro. O determinismo é uma das características presentes nas obras do Naturalismo. Segundo Alfredo Bosi, O determinismo reflete-se na perspectiva em que se movem os narradores ao trabalhar as suas personagens. A pretensa neutralidade não chega ao ponto de ocultar o fato de que o autor carrega sempre de tons sombrios o destino de suas criaturas (Bosi, A., 1997, 170). No que diz respeito às críticas sofridas pelo romance «A carne», José Veríssimo, um dos críticos literários do início do século XX, trata da obscenidade do romance e ainda diz que, mesmo com seus defeitos, o romance merece ser lembrado. (Veríssimo, J., 1998). Além de José Veríssimo, outro crítico do século XX, como José Guilherme Merquior, também mencionou Júlio Ribeiro entre seus escritos, descaracterizando a obra sobre vários aspectos: O quarto narrador de relevo no naturalismo brasileiro não é o medíocre Júlio Ribeiro (1845-1890), já que seu best-sellerA carne (1888) só deve sua popularidade às cenas escabrosas, sem nenhum valor ficcional ou estilístico». (Merquior, J. G., 1996, 160). Antonio Candido faz seu comentário a respeito do romance «A carne», em relação ao erotismo que marca o seu enredo. Embora tenha causado polêmica, o romance foi amplamente divulgado entre o público leitor da época. Segundo Antonio Candido, no mau romance A carne (1888), Júlio Ribeiro (1845-1890) escandalizou e fascinou os leitores com uma descrição de franqueza nunca vista sobre a vida do sexo, misturando à narrativa o arsenal da divulgação científica próprio da época. (Candido, A., 1999, 57). A partir dessa breve introdução acerca do teor da obra que vamos abordar e das características do Naturalismo, bem como da polêmica que o romance «A carne» causou quando de sua publicação, prosseguiremos no nosso estudo, independente das críticas que o romance sofreu por parte da historiografia literária.
O estudo do Direito na Literatura
Sendo a Literatura um produto da sociedade (Candido, A., 2006, 29), o romance «A carne», mesmo tendo em seu enredo um toque de erotismo, sua narrativa é de relevância para o estudo do Direito. Sendo este produto de uma construção histórica, nada melhor do que interpretá-lo por um canal, o literário, a fim de que se possa compreender a evolução dos institutos jurídicos ao longo do tempo, desde o Brasil do século XIX até os dias atuais. Este trabalho tem por base as concepções teóricas formuladas acerca da análise da presença do Direito na Literatura, movimento este iniciado nos Estados Unidos da América no início do século XX, mas não se prende apenas a ele. Para analisar o romance «A carne», é preciso do auxílio da Sociologia da Literatura, da Teoria da Literatura e de ramos do Direito que serão debatidos no decorrer de nosso estudo. Para iniciarmos, Maria Aristodemou (1993), citada por Arnaldo Godoy (2008, 10) diz que «a literatura permite que a discussão de problemas jurídicos tome os mais inesperados caminhos». A relevância desse estudo é explicada por Arnaldo Godoy, no seguinte trecho:
O estudo do direito na literatura mostra-se marcado por formulações pragmáticas. Justifica-se por percepções que dão conta de que o profissional do direito colheria, na literatura manancial de exemplos, indicações de efeito retórico, tinturas de cultura, demãos de generalidade sistêmica. O jurista conhecedor da literatura seria íntimo com os problemas da alma humana (Godoy, A. Sampaio de Moraes, 2008, 10).
Com isso, percebe-se que, com a leitura de obras de relevância literária e que abordam temas discutidos na sociedade, auxiliam o jurista na compreensão do fe nômeno jurídico em diversos aspectos. John Wigmore, norte-americano pioneiro nos estudos do Direito na Literatura, ainda no início do século XX, classificou quatro tipos de romances que podem ser estudados por um jurista para que este possa conhecer por meio de outra ótica os problemas sociais que irá enfrentar em sua carreira profissional e até pessoal. No que diz respeito ao romance «A carne», há uma classificação que se encaixa perfeitamente com seu enredo. Segundo Wigmore, citado por Arnaldo Godoy (2008, 30), são os «romances nos quais o enredo seria marcado por algum assunto jurídico, afetando direitos e condutas de personagens». O enlace epistemológico entre Direito e Literatura neste trabalho não se encerra com essa abordagem inicial, pois ainda não adentramos no enredo do romance. E o enredo do romance será analisado tanto com base no método da redução estrutural desenvolvido por Antonio Candido. Segundo Luis Cancelier de Olivo (2011, 91), «a redução ocorre quando a forma e a estrutura do texto funcionam como mediação entre a história ficcional e a história histórica». Para fundamentar a necessidade do estudo da História para compreensão da evolução do fenômeno jurídico e de sua influência na esfera individual e na vida cotidiana do indivíduo, Agnes Heller, da Escola de Budapeste, diz que «a vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social» (Heller, A., 2000, 20). Já na metade do século XX, Nelson Werneck Sodré tratava do romance como fruto e reflexo do momento histórico em que foi escrito. Segundo ele, Pensamos que a ‘formação e o desenvolvimento da literatura são uma parte do processo histórico total da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias, e também de sua ação, é uma parte daquele processo geral e unitário pelo qual o homem se apropria do mundo mediante sua consciência» (Werneck Sodré, N. 1976, 3). Em relação à redução estrutural e teoria da literatura, Alfredo Bosi diz que:
Respeitáveis
marxistas ortodoxos como Astrojildo Pereira e, na historiografia,
Nelson Werneck Sodré, leram as obras literárias como se
fossem reduções estruturais das respectivas condições
socioeconômicas. A dialética histórica alegada
recortava e destacava o momento ‘tétio’ e
especular da representação, isto é, a relação
condicionante mais igual entre o texto e a sociedade de classes em
que foi gerado (Bosi, A., 2002, 29).
Dessa
forma, salienta-se mais uma vez que a Literatura é uma forma
mais dinâmica de se compreender o Direito e a sociedade de
determinada época. Para confirmar essa afirmação
anterior, Lênio Streck diz que:
Não
tenho dúvida de que a literatura pode ensinar muito ao
direito. Faltam grandes narrativas no direito. A literatura pode
humanizar o direito. Há vários modos de dizer as coisas
(Streck, L. L., 2012, 227).
A partir de então, iniciaremos a abordagem do enredo do romance «A carne», para que dele possamos extrair as questões jurídicas de que trata a trama e envolve seus personagens e analisá-las com base na Teoria da Literatura, na Sociologia e nas construções teóricas acerca da relação entre Direito e Literatura.
Questões jurídicas e sociais no enredo do romance «A carne»
O romance se inicia ao contar a história de perdas do Dr. Lopes Matoso, que, aos dezoito anos perdeu seu pai e sua mãe. Teve como tutor o coronel Barbosa, que o acolheu e lhe ajudou a formar-se bacharel em Direito. Com isso, herdou a fortuna de sua família e logo se casou com uma prima, que faleceu após três anos de casamento devido ao parto, lhe deixando uma filha Helena. Ao mudar-se para uma chácara próxima a capital da província de São Paulo, Lopes Matoso dedicou sua vida a cuidar de sua filha. E, começou primeiramente a lhe instruir, promovendo sua educação. Vejamos um trecho do romance que trata dessa questão:
Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo. Aos catorze anos Helena ou Lenita, como a chamavam, era uma rapariga desenvolvida, forte, de caráter formado e instrução acima do vulgar (Ribeiro, J., 2014, 16).
Devido
ao seu grau de instrução, Lenita dispensou vários
pretendentes que, recém-chegados da Europa, tentavam
conquistá-la com pedantismo, ao falar dos conhecimentos que
adquiriram fora, Acabavam se surpreendendo com a inteligência
que a filha de Lopes Matoso possuía. Dessa maneira, Júlio
Ribeiro busca mostrar um novo papel da mulher numa sociedade como era
brasileira no final do século XIX.
No
entanto, Lopes Matoso faleceu quando Lenita tinha apenas 22 anos.
Transtornada com a dor de perder o pai e sozinha no mundo, ela
resolveu ir para o campo e foi recebida na fazenda de cana-de-açúcar
do coronel Barbosa, o antigo tutor de seu pai, no interior paulista.
A família do coronel era composta de sua esposa, que era
entrevada e, devido a problemas de saúde, vivia em cima de uma
cama, além de seu filho, o engenheiro Manuel Barbosa, que se
encontrava numa temporada de caça. Junto com o luto, o
isolamento na fazenda a fizeram ficar transtornada. Os livros não
lhe interessavam mais e, quando não estava na varanda, estava
deitada numa rede na sala de seu quarto. Passados alguns dias, voltou
a ler os clássicos da literatura e começou a
socializar-se com o coronel e sua esposa. É quando os desejos
da carne começam a lhe aparecer, num dia em que se deitou na
rede da sala do quarto e sentiu desejo pelas formas de uma estátua
de bronze que representava um gladiador. Sua natureza se manifestou e
Lenita entrou em uma crise nervosa que a fez ficar de cama por alguns
dias. Depois de uma convulsão, o doutor Guimarães foi
chamado e socorreu a jovem, dando-lhe uma injeção que
fê-la adormecer. Quando acordou do sono, já estava bem
disposta. Depois dessa crise e já com saúde, ela, em um
passeio a cavalo, decide tomar banho num lago escondido na mata das
terras do coronel. Nessa cena, o escritor se utiliza de uma
caracterização detalhada e de cunho sensual, para
descrever o corpo da personagem, até compará-la a uma
estátua da deusa romana Vênus. Ao voltar de seu banho,
ela é recepcionada pelo coronel com um copo de conhaque, que,
mesmo achando um pouco forte, ela ainda o repete. Até aí
o autor descreve uma personagem que difere das características
das jovens de família da época, que eram criadas dentro
de parâmetros rigorosos e exclusivas para o casamento. Ele
retoma a sua discussão da independência feminina em
pleno interior paulista do final do século XIX. Quando começou
o período da moagem da cana na fazenda, Lenita interessou-se
pelo assunto e sempre perguntava a respeito da plantação
e da administração da fazenda ao coronel. Foi quando,
numa dessas conversas, ela o indagou quando seu filho voltava de suas
caçadas em Paranapanema. Foi quando ela descobriu que Manuel
Barbosa, filho do coronel, um homem maduro de mais de quarenta anos,
havia sido casado com uma francesa quando viveu na Europa a estudos
durante dez anos. Vejamos um trecho da resposta que o coronel deu a
Lenita: «– É, ele casou-se por extravagância
em Paris; no fim de um ano nem ele podia suportar a mulher, nem ela a
ele. Separaram-se». (Ribeiro, J., 2014, 35).
Antes
que o filho do coronel volte de sua caçada, Lenita passa por
diversas situações que não compreende depois.
Primeiro, ela pediu ao coronel para que soltasse um escravo que
estava amarrado a ferros. Eis que o escravo foge, após o
período da moagem e, quando é capturado e submetido aos
piores castigos, Lenita sente um desejo estranho de ver o sofrimento
dos outros. Segundo o autor, passados alguns dias, Lenita «analisava
a crise histérica, o erotismo, o acesso de crueldade que
tivera. Estudava o seu abatimento atual, irritadiço,
dissolvente, cortado de desejos inexplicáveis.»
(Ribeiro, J., 2014, 44). Vejamos mais um trecho dessa autoanálise
que a personagem faz:
Depois
mudava de pensar: não estava doente, seu estado não era
patológico, era fisiológico. O que ela sentia era o
aguilhão genésico, era o mando imperioso da
sexualidade, era a ‘voz da carne’ a exigir dela seu
tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade para a
grande obra da perpetuação da espécie».
(Ribeiro, J., 2014, 44).
Num
período chuvoso, Manuel Barbosa chega à casa de seus
pais, mostrandose uma figura totalmente diferente da imaginada por
Lenita. Esperançosa, se enfeita toda para receber o filho do
coronel. O próprio coronel ainda lhe avisa dizendo: «Pena
que está gastando cera com ruim defunto: o rapaz não é
rapaz, e ainda, por mal de pecados, é beco sem saída».
(Ribeiro, J., 2014, 46). Realmente Lenita tem uma decepção
ao ver Manuel Barbosa, mal vestido e encharcado devido à chuva
que caiu no caminho, além de estar descuidado com os asseios
do corpo, tendo a barba e o cabelo para serem cortados e cheirando a
cachaça. Devido a uma enxaqueca que tinha desde criança,
ele desculpou-se com Lenita e retirou-se para seu quarto. Ela ficou
irritada. Voltou para seu quarto e caiu em prantos, devido à
desilusão. Revoltou-se então. Vejamos um trecho em que
ela critica a sociedade, devido aos desejos carnais que estava
sentindo:
Se
era a necessidade orgânica, genésica de um homem que a
torturava, por que não escolher de entre mil procos um marido
forte, nervoso, potente, capaz de satisfazê-la, capaz de
saciá-la? E se um não lhe bastasse, por que não
conculcar preconceitos ridículos, por que não tomar
dez, vinte, cem amantes, que lhe matassem o desejo, que lhe
fatigassem o organismo? Que lhe importava a ela e a sociedade e as
suas estúpidas convenções de moral? (Ribeiro,
J., 2014, 49).
Devido
a essas descrições do pensamento da personagem Lenita é
que o autor escandalizou a sociedade brasileira da época. A
respeito das necessidades humanas e sua influência na vida
cotidiana do indivíduo, Agnes Heller, diz o seguinte:
As
necessidades humanas tornam-se conscientes, no indivíduo,
sempre sob a forma de necessidades do Eu. O «Eu» tem
fome, sente dores (físicas ou psíquicas); no «Eu»
nascem os afetos e as paixões. A dinâmica básica
da particularidade individual humana é a satisfação
dessas necessidades do «Eu». Sob esse aspecto, não
há diferença no fato de que um determinado «Eu»
identifique-se em si ou conscientemente com a representação
dada do genericamente humano, além de serem também
indiferentes os conteúdos das necessidades do «Eu».
(Heller, A., 2000, 20).
A
personagem resolveu então, graças as suas condições
financeiras, voltar para São Paulo, onde podia conseguir o que
quisesse, na sua concepção. Seguese mais um trecho
sobre sua decisão repentina:
Teria
amantes, por que não? Que lhe importavam a ela as murmurações,
os ‘diz-que-diz’ da sociedade brasileira, hipócrita,
maldizente. Era moça, sensual, rica – gozava.
Escandalizavam-se, pois que se escandalizassem. Depois, quando
ficasse velha, quando se quisesse aburguesar, viver como toda a
gente, casar-se ia. Era tão fácil, tinha dinheiro, não
lhe haviam de faltar titulares, homens formados que se submetessem ao
jugo uxório que lhe aprouvesse a ela impor-lhes. Era pedir por
boca, era só escolher (Ribeiro, J., 2014, 51).
Adormeceu
com esse pensamento. Ao levantar-se no dia seguinte, a imagem de
Manuel Barbosa ainda a perseguia. Ela decidiu dar uma volta no pomar.
Foi quando se encantou com o novo homem que vira ele se transformar.
Vejamos a descrição do autor: «Deu volta à
laranjeira e topou com Manuel Barbosa que se encaminhava para ela,
risonho, palacianamente curvado, na mão direita o chapéu,
na esquerda um cravo rubro, perfumado, esplêndido»
(Ribeiro, J., 2014, 53). Começaram então a se
entenderem e iniciaram uma amizade, quando começaram a
discutir os conhecimentos das ciências que ambos adquiriram.
Durante o passeio, falaram de botânica. Ao chegarem de braços
dados, Manuel Barbosa deu seu parecer acerca da impressão que
tivera de Lenita:
Sim
senhor, meu pai, a Excelentíssima senhora dona Helena é
para mim uma surpresa, uma revelação. Sabia-a muito bem
educada, mas supunha-a bem educada, como o são em geral as
moças, com especialidade as brasileiras: piano, canto, quatro
dedos de francês, dois de inglês, dois de geografia e...
pronto. Pois enganei-me: a Excelentíssima senhora dona Helena
dispõe de erudição assombrosa, mais ainda, tem
ciência verdadeira, é um espírito superior,
admiravelmente cultivado (Ribeiro, J., 2014, 55).
Em
seguida, os dois iniciam uma forte relação, através
do interesse de Lenita nos experimentos científicos que Manuel
Barbosa começa a praticar dentro de casa. Começam a
estudar juntos a física, química, fisiologia. Por fim,
estudavam as línguas clássicas, tais como o grego e o
latim. Barbosa deixou de entender se o que sentia agora por Lenita
era amor ou amizade. O autor revela o que o personagem pensava a
respeito de sua recente relação:
Amor
verdadeiro, com objetivo definido, carnal, também não
era: ao pé de Lenita ainda não tivera desejo algum
lascivo, ainda não sofrera o pungir do espinho da carne.
Tivera em tempo uma paixão que o levara à tolice
suprema do casamento, mas isso passara; tinha-se até
divorciado da mulher com cujo gênio se não tinha podido
harmonizar (Ribeiro, J., 2014, 58).
Com
o passar do tempo, a relação entre os dois se estreita
ainda mais. É tanto que Lenita passa a sofrer quando Manuel
Barbosa tem assuntos a tratar em Santos, devido a uma companhia que
faliu e na qual seu pai possuía ações. Tanto é
que ele escreve uma carta, descrevendo a paisagem e vários
aspectos naturais que ele percebera durante sua viagem. Mais uma
característica dos romances do Naturalismo. Antes de fazer a
tal viagem, Lenita entra no quarto de Manuel, enquanto a mucama
estava a arrumar a mala dele e então começa a sentir os
mesmos desejos carnais de outrora. Triste pela partida dele no dia
seguinte, ela o tratou com indiferença quando quis conversar.
Devido ao comportamento de Lenita, Manuel se despede dos pais e
resolve ir pro seu quarto, a fim de se deitar mais cedo. No entanto,
a lembrança de Lenita não o deixa dormir. É
quando ele tem o seguinte pensamento acerca de uma futura relação
mais séria com ela, caso estivesse mesmo apaixonado pela sua
amiga. O trecho do livro diz o seguinte:
Casar
com Lenita não podia, era casado. Tomá-la por amante?
Certo que não. Preconceitos íntimos não os
tinha: para ele o casamento era uma instituição
egoística, hipócrita, profundamente imoral,
soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição
velha de milhares de anos, e nada mais perigoso do que arrostar,
contrariar de chofre as velhas instituições; elas hão
de cair, sim, mas com o tempo, com a mesma lentidão com que se
formaram, e não de chofre, como um relâmpago. A
sociedade estigmatizava o amor livre, o amor fora do casamento; força
era aceitar o decreto antinatural da sociedade». (Ribeiro, J.,
2014, 64).
A
Constituição de 1824, norma ápice do ordenamento
jurídico do Império do Brasil, estabelecia o seguinte
em seu art. 179, XVIII: «Organizar-se-á quanto antes um
Código Civil, e Criminal, fundado nas sólidas bases da
Justiça, e Equidade». O autor, ainda no século
XIX, já trata de um modelo de união estável que
só veio a ser regulamentada no vigente Código Civil de
2002. Mesmo com vários projetos e comissões criadas
para elaborar uma consolidação para as normas civis,
nunca foi estabelecido um Código Civil, enquanto que as
Ordenações Filipinas continuaram vigentes para
regulamentar o Direito Civil. (Guerra, M., 2010). Apenas com o
projeto de Clóvis Bevilácqua, é que, durante a
República, é promulgado o Código Civil de 1916,
que não trouxe nenhuma regulamentação acerca do
divórcio. Anos depois é que, com a Lei 6.515, de 26 de
Dezembro de 1977, a dissolução de sociedades conjugais
foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto
seu futuro amante viaja, Lenita aproveita para caçar animais
silvestres na mata que fica dentro da propriedade. Após
receber a carta, ela confirmou que realmente estava apaixonada por
Manuel. Antes de prosseguirmos com a descrição do
romance entre Lenita e Manuel Barbosa, apelidado de «Manduca»
(Ribeiro, J., 2014), o autor, que na época era defensor dos
ideais abolicionistas, trata de uma questão de tribunal de
exceção formado pelos escravos da fazenda, para punir
um escravo que contava já oitenta anos, chamado Joaquim
Cambinda e que vivia num paiol abandonado e que chefiava uma seita.
Com a chegada de Manduca, uma escrava chamada Maria Bugra apareceu
doente com sinais de envenenamento, chegando a falecer em cima de uma
marquesa na varanda da casa grande, onde foi acudida. Manduca falou
com o coronel Barbosa e, após uma análise de outras
mortes de escravos ocorridas e que apresentaram os mesmos sintomas
pelos quais Maria Bugra padeceu, concluiu que era obra de Joaquim
Cambinda, devido a suas práticas de feitiçaria, com um
veneno extraído de uma planta chamada figueira do inferno.
Chamado
a depor junto ao coronel, o escravo confessou que envenenou Maria
Bugra e tantos outros escravos, além de dizer que era o
culpado pela situação da esposa do coronel estar
entrevada. Segundo sua confissão, ele queria se vingar de
todos da fazenda. Com isso, os outros escravos prenderam Joaquim
Cambinda e queimaram-no vivo numa fogueira. O coronel nada fez para
impedir a revolta dos escravos e a punição que eles
impuseram ao acusado. Embora houvesse um Código de Processo
Criminal vigente desde 1832, como foi estabelecido no anteriormente
citado artigo da Constituição de 1824, o autor faz uma
severa crítica ao processo penal naquele período,
conforme no trecho do romance a seguir:
Até
1887 vivia-se em pleno feudalismo no interior da província de
São Paulo. A fazenda paulista em nada desmerecia o solar com
jurisdição da Idade Média. O fazendeiro tinha
nela ‘cárcere privado’, gozava de alçada
efetiva, era realmente senhor de baraço e cutelo. Para reger
os ‘súditos’, guiava-se por um código
único: a sua vontade soberana. De fato estava fora do alcance
da Justiça: a lei escrita não o atingia. (...) Para
manter o fazendeiro na posse de privilégios consuetudinários,
estabeleciam-se praxes forenses, imorais e antijurídicas.
(...) O sucesso pavoroso, o linchamento atroz do feiticeiro pelos
escravos da fazenda, não transpirou e, se transpirou, se
alguma coisa chegou aos ouvidos das autoridades da vila, elas não
se moveram (Ribeiro, J., 2014, 110).
Após
esse trágico episódio, Lenita e Manuel Barbosa
iniciaram um período de caçadas dentro das terras do
coronel. Num certo dia, à espera de um porco do mato se
aproximar do local onde montou a armadilha, Lenita é picada
por uma cascavel. Manduca é obrigado a por em prática
seus conhecimentos de medicina e consegue sugar o veneno da perna
dela, levando-a depois para repousar no casarão até que
se recuperasse. A atitude que fez, atiçou ainda mais o romance
dos dois. E, numa certa noite, Lenita sai de seu quarto e entra no
quarto dele, a fim de observá-lo dormindo. Manduca acorda e
tem o seguinte pensamento, assim narrado pelo autor: «Um tropel
de ideias desordenadas agitou-se-lhe, confundiu-se-lhe no cérebro
excitado; o raciocínio ausentou-se, venceu o desejo, triunfou
a sugestão da carne». (Ribeiro, J., 2014, 130) Naquela
mesma noite, os dois consumaram seu amor. E, numa sequência de
dias, a cada madrugada, um ia ao quarto do outro. Segue-se outra
descrição da situação em que se
encontrava Manuel Barbosa, agora apaixonado por Lenita:
Descrente
de mulheres, divorciado da sua, gasto, misantropo, ele abandonara o
mundo, retirara-se com seus livros, com seus instrumentos
científicos, para um recanto selvagem, para uma fazenda do
sertão. Abandonara a sociedade, mudara de hábitos, só
conservara, como relíquias do passado, o asseio, o culto do
corpo, o apuro despretensioso do vestir. Levava a vida a estudar, a
meditar. (...) E eis que a fatalidade das coisas lhe atira no meio do
caminho uma mulher virgem, moça, bela, inteligente, ilustrada,
nobre, rica. E essa mulher apaixona-se por ele, força-o também
a amá-la, cativao, aniquila-o. Faz mais: contra a expectativa,
tornando realidade o improvável, o absurdo, vem ao seu quarto,
interrompe-lhe o sono, entrega-se-lhe... Ele a tem entre os seus
braços, lânguida, mole, roída de desejos;
aperta-a, beija-a... (Ribeiro, J., 2014, 131).
Analisando
a presente situação do personagem à luz da
Teoria Literária, comparo Manuel Barbosa ao estilo de
personagem trágico, estilo típico descrito e estudado
por Georg Lukács em sua «Teoria do Romance».
Lukács (2000) trata do herói que trava um conflito
consigo mesmo, alheio à realidade que o cerca. De acordo com
Lukács:
A
melancolia de ser adulto nasce da experiência conflitante de
que a confiança absoluta e pueril na voz interior da vocação
se rompe ou diminui, mas de que também é impossível
extrair do mundo exterior, a cujo despotismo nos devotamos agora
docilmente, uma voz que indique sem equívocos o caminho e
determine os objetivos. (Lukács, G., 2000, 87).
O
transtorno de Manduca é tamanho, que, quando Lenita recebe uma
carta do Dr. Mendes Maia, que lhe fez a corte num baile quando ela
ainda vivia em São Paulo, pedindo a mão dela em
casamento. A princípio, ela recusa a proposta, como fez com
vários outros pretendentes. Mesmo assim, com o retorno do
período da moagem da cana, um filho de um escravo perde o
braço numa das máquinas e danifica todo o maquinário
utilizado para a produção. Manduca é obrigado a
ir partir para a capital, para tratar com um tal de Dr. Mursa,
produzir uma novo maquinário. Nessa passagem, Júlio
Ribeiro aproveita para denunciar a situação da
escravidão mais uma vez. Ele cita como exemplo o fato do
coronel não se importar com os danos físicos do filho
do escravo, devido a Lei 2.040 de 28 de Setembro de 1871, a chamada
Lei do Ventre Livre, ter libertado os filhos de escravos a partir
daquela data. O personagem do coronel Barbosa comenta o seguinte,
segundo a narrativa do autor:
Lá
pelo crioulinho não: era ingênuo, era 28 de setembro,
ficasse aleijado, pouco prejuízo havia. Que o azar era a
interrupção da moagem, quando ia tudo correndo tão
bem, em um tempo como se não havia de ter outro.»
(Ribeiro, J., 2014, 144).
Júlio
Ribeiro, com a clareza de seus ideais não podia ficar calado
vendo os desmandos da sociedade brasileira da época. É
tanto que ele afirmava, conforme trouxe Carlos Alberto Iannone:
O
homem que sabe servir-se da pena, que pode publicar o que escreve e
que não diz a seus compatriotas o que entende ser a verdade,
deixa de cumprir um dever, comete o crime de covardia, é mau
cidadão. (Ribeiro, J. in Iannone, C.A., 2014, 169).
Daí
o caráter de resistência do meio literário, onde
o escritor observador e crítico do modelo das relações
sociais que se contrapõe com seu ponto de vista, e, no caso da
do filho do escravo, situação que violava os direitos
fundamentais e inerentes à pessoa humana. Nessa seara, ao
estudar Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi diz o seguinte:
Para
Carpeaux, cujo pensamento remonta de Rithley a Hegel, e que nunca foi
afetado pela Sociologia positivista, a literatura não é
só, nem principalmente, o espelho das estruturas dominantes,
mas um campo minado de tensões. O grande escritor é uma
antena capaz de apreender sinais de fratura entre épocas,
entre classes, entre grupos, entre indivíduos e entre momentos
dilacerantes de um mesmo indivíduo. A tensão é o
dado de realidade social e íntimo que engendra a diferença,
a oposição, e o aberto contraste (Bosi, A., 2002, 39).
Após
reforçar a relevância da obra de Júlio Ribeiro,
continuemos com o relato do enredo do romance. Devido às
inúmeras noites que passou junto com Manuel Barbosa, Lenita
percebe que engravidou, ao recorrer a uma tabela de suas regras.
Antes que Manduca voltasse da capital, envolvida numa situação
embaraçosa, Lenita decide partir para São Paulo,
deixando para trás a fazenda e seu romance com o filho do
coronel Barbosa.
Ao
retornar de viagem, Manduca recebe a notícia de que Lenita
partiu para a capital. Esta envia uma carta para o coronel Barbosa e
para Manduca, anunciando que reviu a proposta de casamento e iria
casar-se com o Dr. Mendes Maia. Era um casamento para mascarar a
relação extraconjugal que resultou no filho que ela
esperava. Na carta que enviou a Manduca, continha um anexo em que ela
lhe dizia o seguinte:
Estou
grávida de três meses mais ou menos. Preciso de um pai
oficial para nosso filho: ora pater est is quem instae nuptiae
demonstrant. Se tu fosses livre, fazíamos ‘vistas’na
igreja as nossas núpcias naturais, e tudo estava pronto. Mas
tu és casado, e a lei do divórcio aqui no Brasil não
permite novo enlace: tive de procurar outro. ‘Tive de procurar’
é um modo de dizer: o outro deparou-se-me, ofereceu-se-me; eu
me limitei a aceitá-lo e ainda impus-lhe condições.»
(Ribeiro, J., 2014, 163).
Ela
ainda revela que, se o filho nascer homem o chamará de Manuel
e, se for menina, será Manuela. Com o casamento, Lenita avisa
que vai partir numa viagem de núpcias pela Europa.
Transtornado, Manduca sabe que nunca mais verá a sua amada, a
quem se entregou e viveu esse romance proibido pelas leis brasileiras
da época. Deu uma volta pela fazenda, relembrando todos os
locais e as situações agradáveis que passou
junto com Lenita. Procurou entre seus experimentos um veneno chamado
curare e resolveu que sua vida não tinha mais sentido. Entrou
no seu quarto, deitou-se e injetou o veneno na veia. O veneno ia
paralisando seu corpo lentamente, até que só lhe restou
o cérebro ainda com vida, para lembrar e analisar a situação
em que se encontrava. Seu pai e sua mãe, que, mesmo entrevada,
saiu se arrastando até o quarto do filho quando soube que ele
estava morrendo, estavam ao seu lado na cama, vendo-o a morte o
levar. O autor narra esses últimos momentos da seguinte
maneira:
E ele morria, por amor dessa mulher, morria porque ela lhe quebrantara o caráter, morria porque ela o prendera nos liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe tornara impossível... (...) Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda». (Ribeiro, J., 2014, 168).
Conclusão
A partir da não aceitação das convenções sociais que não permitiam a dissolução da sociedade conjugal o personagem Manuel Barbosa isolou-se do convívio social, apenas voltando a este quando se apaixonou pela personagem Lenita. Não se conteve aos desejos da carne, da natureza humana, e, consequentemente, engravidou a sua amada. Como a legislação da época não permitia o reconhecimento dos filhos tidos fora do casamento, Lenita viu-se forçada, devido à sua posição social, a casar-se com outro homem para dar um nome ao filho fruto da livre relação entre ela e Manuel Barbosa. Com todos esses desgostos, sem razões para viver, ele comete suicídio. A partir da análise desses fatores que levaram a um fim trágico no romance, fica uma dúvida: Foi a carne (natureza humana) ou foi a sociedade que levaram Manuel Barbosa ao suicídio? É com essas e outras perguntas intrigantes que nos deparamos quando estudamos o Direito e as convenções sociais de determinada época à luz da narrativa literária e sob o ponto de vista do escritor. Percebemos como a questão da escravidão e das punições dadas aos escravos contrastavam de forma significativa com os direitos fundamentais de inspiração liberal estabelecidos na Constituição de 1824. Vimos que, embora vigesse um Código de Processo Criminal desde 1832, até o ano de 1887, época em que se situa o enredo do romance, a barbárie e o sistema punitivo medieval ainda imperavam nas propriedades e latifúndios do interior paulista, conforme o autor opinou numa passagem do romance. Com o estudo do romance «A carne», percebemos que as críticas feitas ao conteúdo do romance não atingiram as questões jurídicas e sociais que o autor aborda e relata com objetividade e clareza na sua obra-prima, no âmbito literário.
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