Ideologias Contemporâneas: Atores Hegemônicos e

Banalização Política – Estudos em Zygmunt Bauman



Las Ideologías Modernas: Agentes Hegemónicos y

Banalización Política – Estudios en Zygmunt Bauman



Daniel Mascarin Pires Kumasaca: Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (2011). Professor-Assistente Voluntário e pesquisador nas áreas de Ciência Política, Teoria Geral do Estado, História e Filosofia Geral e do Direito. Gerente-Jurídico da empresa Vizeu Leiloeiro Oficial.

dan_masc@hotmail.com



Osvaldo Estrela Viegaz: Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Nove de Julho (2014). Licenciado em História pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (2009). Pesquisador nas áreas de Ciência Política, Teoria Geral do Estado, História e Filosofia Geral e do Direito. Advogado em São Paulo.

o-viegaz@uol.com.br



Recepción: 07/07/2015

Aceptación: 01/08/2015



Resumo: Estudar a pós-modernidade é sempre tarefa delicada devido aos muitos desdobramentos que um único tema pode tornar possível. Zygmunt Bauman nos abre a possibilidade de analisar o cerne da questão e, partindo dele, encontrar os motivos da crise global da contemporaneidade. Com isso, analisando tanto os atores hegemônicos como a banalização geral, podemos compreender muitos fatores essenciais sobre os meandros da atual crise de consciência e da razão humana, males que atingem diretamente o ser humano em sua identidade cotidiana.

Palavras-Chaves: Ideologia; consumismo, agentes hegemônicos; banalização; crise global

Resumen: Estudiar la posmodernidad es siempre delicada tarea debido a los muchos desdoblamientos que de un solo tema son posibles. Zygmunt Bauman abre la posibilidad de analizar el fondo de la cuestión y, a partir de él, encontrar las razones de la crisis mundial de la contemporaneidad. Por lo tanto, el análisis tanto de los actores hegemónicos como la banalidad general, podemos entender muchos factores esenciales sobre los entresijos de la crisis actual de la conciencia y de la razón humana, males que afectan directamente al ser humano en su identidad cotidiana.

Palabras clave: Ideología; consumismo; agentes hegemónicos; banalización; crisis global

Introdução

Quando pensamos na contemporaneidade, uma gama sem fim de possibilidades de análise surge em nosso pensamento: artes, cultura, política, sociedade, meios jurídicos, cinema, esportes e outros tantos.

Adentrar em cada um desses aspectos é tarefa complicada, pois nos dias atuais o que mais vemos no mundo globalizado é muita informação perdida e desencontrada, sem se produzir conhecimento a partir delas.

Estamos vivendo uma crise sem precedentes em todas as instâncias da vida em sociedade, que afeta desde o mais simplório axioma humano até a atividade mais complexa desenvolvida pelo Estado ao regular as relações humanas em geral.

Diante dessa perspectiva, a pós-modernidade nos apresenta um fator em comum que permite destrinchar as nuances dessa crise na qual o mundo está inserido. Os atores hegemônicos estão presentes, já há algumas décadas, como fundamentos principais desses paradigmas do colapso global.

Destarte, vemos que sua presença aumentou consideravelmente após a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945) e que as proporções tomadas pelas corporações que integram esses agentes tomou tamanha grandeza que, em muitos casos, ultrapassou os limites do crível e adentrou na seara do próprio Estado, deixando-o para trás.

Se antes da revolução tecno-científica operada em fins dos anos 1960 e com expansão acelerada na década de 1970, os seres humanos estavam em voga nas discussões políticas, jurídicas e sociais, agora o foco muda e, embora procurem atingir o homem, a natureza dessas discussões não mais referem-se ao seu espectro existencial.

Verificaremos esta questão quando analisarmos, por exemplo, como os direitos humanos foram pensados após as atrocidades nazifascistas e como foram sendo maleados e distorcidos com o passar dos anos até chegar ao ponto de se desumanizarem em nome de algo maior e incompreensível.

Isto, aliás, é outro ponto salutar: quando se afirma que esta situação é incompreensível o que se procura fazer é deixar os seres humanos presos nos grilhões de verdades absolutas que formam seus axiomas, isto é, retiram-lhe a possibilidade de discutir aquilo que melhor se enquadra no ser humano completo e aceitam o que já vem posto, sem a necessidade de perder tempo pensando em saídas para isso, já que “tempo é dinheiro”.

A transformação do Estado em entes despersonificados de caráter público para algo puramente mercadológico é a essência desta atual fase da humanidade, que deve ser ultrapassada pela sociedade com a tomada de consciência e a racionalização dos axiomas verdadeiramente humanos.

Procuramos, assim, estudar como todos esses fatores devem ser ultrapassados para que a banalização contemporânea da política, da sociedade, do Estado e do próprio homem em sua essência seja superada, de modo a possibilitar novos estudos nos mais diversos campos da humanidade.

A crise global somente será superada quando o homem superar a sua crise interna existencial, passando de mero figurante no cenário geral à ator principal, papel hoje ocupado pelos agentes hegemônicos.

Direitos Humanos e o Mundo Desumano

O Século XX, em diversos aspectos, evidenciou-se por ser um momento no qual a humanidade passava por transições nos mais diversos campos de sua existência, principalmente nos setores políticos, sociais e econômicos, atingindo cada qual, de alguma forma, níveis diferenciados na sociedade.

No campo político, o mundo passou por duas grandes Guerras (1914-1917 e 1939-1945), no qual o saldo final de mortos ultrapassa os milhões, além das constantes Revoluções Políticas, sendo as mais significativas a Russa (1917-1922), a Chinesa (1949) e a Cubana (1955-1959).

Na economia, o sistema capitalista encontrou diversas crises, principalmente com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, no período entre guerras, fazendo com que o modelo capitalista passasse a conviver mais frequentemente com essas crises sucessivas nas décadas seguintes.

Em meios sociais, tanto os fatores políticos, como econômicos acima elencados exerceram força avassaladora sobre os desígnios da humanidade. Os paradigmas até então existentes foram quebrados e o homem foi relevado a segundo plano, retirando-se dele justamente o seu fator humano.

É Hannah Arendt que nos traz constatação impactante sobre esses eventos. O ser humano está e foi relegado como nada pelos centros hegemônicos de poder, em que o Estado dita as regras e a sociedade obedece, criando abismos imensuráveis.

A única atividade que corresponde estritamente à experiência de completa ausência do mundo ou, antes, à perda do mundo que ocorre na dor, é o labor no qual o corpo humano, embora em atividade, também se volta para dentro de si mesmo, concentra-se apenas no fato de estar vivo, e permanece preso ao seu metabolismo com a natureza sem jamais transcender ou libertar-se do ciclo repetitivo do seu próprio funcionamento. (Arendt, H. 2007, 127).

Onde ficou, então, a condição humana? A ausência humana do mundo é resultado de séculos de transformações profundas no pensamento e, mais do que isso, na grande profusão de ideias diferentes e dicotômicas, que levam não apenas a questionamentos dos mais diversos, como também ao próprio homem se questionar sobre sua existência.

Se tivermos como exemplo os atos praticados pelos regimes totalitários do século XX, por evidência que acertaríamos em cheio ao afirmar que a prevalência dos direitos humanos seria mais do que uma necessidade, como também uma realidade que saltaria aos olhos.

O Estado não é mais responsável direto pela política, já que sofre não apenas a influência indireta, mas em muitos casos a atuação direta das grandes corporações responsáveis pela manutenção econômica das Nações.

Se o Estado já não preside à reprodução da ordem sistêmica, tendo agora deixado a tarefa às forças de mercado desregulamentadas, e assim não mais politicamente responsáveis, o centro de gravidade do processo de estabelecimento da ordem deslocou-se das atividades legisladoras, generalizadoras, classificadoras e categorizadoras. (Bauman, Z., 1998, 53).

Vê-se, pois, que a banalização da política atinge muitos setores, incluindo o legislativo do Estado. Se nos recordarmos de alguns contratualistas, tais como Thomas Hobbes e John Locke, que consideravam o Órgão Legislativo o principal do Estado, pois é nele que as leis necessárias à sociedade eram produzidas, veremos que a atuação direta das forças do mercado desregulamenta a atuação do próprio legislativo.

Exemplo dessa desregulamentação é a questão dos direitos humanos. Quem, afinal, define o que será um direito humano? A famosa máxima “direitos humanos para humanos direitos” ganha vulto neste sistema-mundo capitalista, já que as determinações legais não estão mais no Estado e, sim, em grandes corporações que desregulamentam ao seu interesse a legalidade da lei, num verdadeiro exemplo de anomia do vazio da exceção agambeniana.1

A própria fomentação e busca incessante iniciada no pós-guerra e continuada ao longo de toda a Guerra Fria em encontrar de todas as maneiras uma forma de internacionalizar totalmente os direitos humanos pode ser considerada como resultado não do que se apresentava advindo do totalitarismo, mas sim de fatores externados influenciadores destas práticas.

Ora, se considerarmos que os direitos humanos ganharam verdadeiro cabedal e defensores após as atrocidades cometidas nos campos de concentração e de trabalhos forçados, sejam eles nazistas, soviéticos, chineses ou das ditaduras sulamericanas, e de outra partida analisar que os mesmos defensores desses direitos aplaudiram e apoiaram a exceção de um tribunal totalitário, como foi o caso do Julgamento de Nuremberg, os direitos humanos parecem ser contraditórios com a própria humanidade.

Mais do que isso: se verificarmos, além do tribunal de exceção de Nuremberg, também o fato de a guerra ter-se encerrado após o lançamento de duas bombas atômicas sobre cidades japonesas novamente nos faz questionar a razão do direcionamento dos direitos humanos, já que a explosão não destruiu o exército ou os artefatos bélicos daquele país, mas varreu do mapa duas cidades e suas populações.

Quando a primeira bomba atômica caiu sobre Hiroshima, provocando um fim rápido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror percorreu o mundo.

Naquela época, ainda não se podia saber quão justificado era esse horror. Uma única bomba atômica arrasou uma cidade, fazendo em apenas poucos minutos o que o emprego sistemático de ataques aéreos precisaria de semanas ou mesmo meses. Que a condução da guerra, de novo como na Antiguidade, podia dizimar não apenas os povos com ela relacionados, mas também podia transformar num deserto o mundo por eles habitado, era do conhecimento dos especialistas desde o bombardeio de Coventry e do conhecimento de todo o mundo desde os ataques em massa, com bombas, às cidades alemãs. (Arendt. H., 2013, 85-86).

Expliquemos melhor: a legalidade positiva é o que motiva a internacionalização dos direitos humanos, uma vez que, apesar de se considerar inúmeros direitos como fundamentos humanos, a experiência na aplicabilidade dos mesmos se mostrou verdadeiro fracasso, como ocorreu nos casos acima elencados. Mas se é a legalidade positiva que motiva os direitos humanos, não podemos dizer o mesmo sobre quem serão os agentes escolhidos para serem agraciados com tais direitos, sendo o mesmo um ato puramente discricionário.

Analisando essa questão sob o prisma do nacionalismo pujante que caracterizou muito do totalitarismo das guerras e que se transmutou na ideia de Soberania nos ditos países democráticos, teremos exatamente o problema de se conhecer quem poderia ser o sujeito dos direitos humanos.

Os direitos humanos, antes algo universal e internacionalizado no pós-guerra como medida de lídima justiça com os povos que sofreram as atrocidades praticadas em nome da legalidade, já que baseada em ações lastreadas por um intrincado aparelho de leis, passou do universal ao nacional, do todo à parte.

Ou seja, a legalidade que fundamentou a internacionalização do antissemitismo nazista é a mesma que fundamentou a universalização dos direitos humanos e que procurou salvaguardar os direitos desses povos. Os Estados-Nações ganham em importância quando têm o papel de prover ao mundo os direitos internacionais, mas perdem em potência com o desenvolvimento empresarial dos novos atores hegemônicos.

De uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem, e soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria. (Arendt, H., 1989, 262).

A própria ideia de soberania que, sobretudo pelo Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, significou a união do povo em busca de um ideário comum de Estado, muda de foco. Não é mais o homem enquanto sujeito universal, mas sim individual, em que os direitos do homem, antes soberanos, agora devem estar abaixo dos próprios homens.

A soberania do Estado, na realidade, deixa de ser voltada ao ser humano enquanto sujeito racional de direitos e deveres, aquela mesma acepção usual que se tem para definir a cidadania e que, na realidade, deveria fundamentar o que é a soberania do povo (novamente conforme Rousseau).

O homem não está mais para o Estado como deveria estar. A função estatal de prover a sociedade com leis visando sua regulação, com órgãos de julgamento quando as mesmas são transgredidas e com funções para a execução das leis deixa de ser voltada ao homem como um ser racional.

O resultado prático dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como cidadão – isto é, indivíduo – e como membro de grupo, perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser agora interpretada pelos românticos como a nebulosa representação de uma “alma nacional” que, pelo próprio fato de existir, devia estar além e acima da lei. Consequentemente, a soberania nacional perdeu a sua conotação original de liberdade do povo e adquiriu uma aura pseudomística de arbitrariedade fora da lei. (Arendt, H., 1989, 262).

Existe uma contradição gigantesca quando o Estado não provém o homem com direitos básicos. O Estado se furta de uma função que não pode ser passada a um particular ou a um setor privado. Não temos, por exemplo, uma empresa de blindagem de automóveis legislando sobre o trânsito ou empresas de proteção patrimonial sobre segurança pública.

A ideia de direitos humanos, assim, se desumaniza, na medida em que o Estado, responsável pelas preocupações sociais, relega à segundo plano sua importância, além de incutir nas empresas o fator principal da legalidade humana, ou seja, a apresentação dos direitos humanos, antes de ligar-se aos desígnios do homem, estará, outrossim, em conformidade com os preceitos empresariais desses agentes hegemônicos.

É certo que o fenômeno chamado globalização trouxe consigo muitos atores que tomaram à frente os rumos gerais da humanidade e do Estado. Estes agentes não são novos e surgiram com a própria contemporaneidade, seja com a ascensão da burguesia no limiar do Século XVIII, quando da Revolução Francesa, seja com a burguesia industrial inglesa, em franca expansão após a Segunda Revolução Industrial, já no Século XIX.

Os interesses dessa burguesia industrial dominante aparecem não no ser humano, mas se transmuta na própria identidade da empresa, como se a “pessoa jurídica” criasse vida enquanto “pessoa natural”. A política, considerada um fator essencialmente humano desde que o mundo é mundo, deixa o homem e se transfere para esses novos atores hegemônicos.

Nessas condições, a tendência é a prevalência dos interesses corporativos sobre os interesses públicos, quanto à evolução do território, da economia e das sociedades locais. Dentro desse quadro, a política das empresas – isto é, sua policy – aspira e consegue, mediante uma governance, tornar-se política; na verdade, uma polítia cega, pois deixa a construção do destino de uma área entregue aos interesses privatísticos de uma empresa que não tem compromissos com a sociedade local. (Santos, M., 2000, 107).

Muito do que vemos hoje decorre exatamente dessas banalizações que estão diretamente ligadas ao domínio conferido pelos Estados a estes novos agentes hegemônicos, numa forma de privatizar o próprio Estado, desde a política até o direito, o que é extremamente perigoso.

Até que ponto, então, estas empresas não agem como fatores de influência, isto é, até onde as grandes corporações não conseguem que o Estado Nacional legisle não de acordo com a comumente ideia de bem comum público e sim como um bem comum privado? É uma questão complicada, mas não impossível de se trabalhar.

O Mundo Pós-Segunda Guerra

Se os regimes totalitários mostraram algo além da violação aos direitos foi que o ser humano não possuía limites para alcançar seus objetivos, independente de quais ou se atingiriam alguém ou algum grupo de pessoas.

É notório que o desenvolvimento ideológico foi paulatinamente construído ao mesmo tempo em que, quanto mais a população como um todo passou a ter acesso a determinados meios de conhecimento (sobretudo a escrita e a leitura), tais ideias se difundiram e encontraram campo fértil, cada qual angariando seus adeptos. Se na antiguidade os discípulos disputavam os mestres, cada vez mais hoje os mestres disputam discípulos, procurando alcançá-los com suas doutrinas das mais variadas.

Não estamos aqui tecendo críticas desmedidas à produção intelectual humana. Do contrário, levantamos a questão simples de que, com todas as teorias que bombardeiam o homem do Século XX, apesar de o mesmo ter mais acesso à informação e ao conhecimento do que as sociedades em geral ao longo da história, criam mais dúvidas da sua situação do que certezas do seu papel no mundo.

É esta ausência que em uns se manifestam de forma mais veemente e em outros de maneira mais comedida que demonstra exatamente a relação dialética que iguala o homem ao mesmo tempo em que o diferencia e faz surgir, com isso, discursos dos mais variados, seja para se fazer compreender ou para ganhar adeptos à sua causa.

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso e da ação para se fazerem entender. (Arendt, H., 2007, 188).

Por evidência que o ser humano não é igual em todos os aspectos e o inverso também é verdadeiro, de modo que não o é diferente na totalidade de seus pares. Possuem características idênticas e outras não que formam a sua identidade e tornam a sociedade plural.2

Consideramos todos estes aspectos para adentrarmos no momento que se seguiu ao fim da II Guerra Mundial e que colocou em destaque não apenas as duas superpotências com ideários opostos, mas principalmente levou a humanidade a (se) questionar sobre os limites da atividade humana.

Os modelos totalitários surgidos neste século, partindo do modelo nazifascista e passando pelo comunismo soviético, chinês e cubano, somados às atrocidades cometidas em nome da suposta política superior ajudam a compreender o que se passou após o término da guerra na Europa.3

Assim, verificamos que a grande tacada encontrada pelos regimes totalitaristas é justamente o fato de o controle extremo exercido pelos mesmos ter sido, um dia, convalidado pela própria sociedade, em que o apoio do povo é necessário para que o líder totalitário alcance, se mantenha e utilize o poder.4

Esta questão se mostrou um verdadeiro problema nas ditas nações democráticas. Não são as diversas classes, mas sim as massas as responsáveis pelo totalitarismo, o que acabou por desmistificar a ideia democrática de participação popular, já que a neutralidade pode ser a maioria e a democracia se faria pela minoria do povo.

Agora, os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo, tanto quanto nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país. Assim, quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com isto a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria. (Arendt, H., 1989, 362).

Vemos, pois, que não foi somente o nazismo ou os modelos comunistas excederam os limites da razoabilidade humana. Os Estados Unidos, considerado o “país-modelo” de ideal democrático foi o responsável direto pelo sucesso das ditaduras militares instaladas na América Latina durante os anos 1960, principalmente nos países do chamado Cone Sul e no Brasil. Durante os anos de Guerra Fria, a Operação Condor foi preponderante na manutenção do capitalismo nos países latinos.

Desde a Geopolítica da Bipolaridade até os modos de produção capitalista, a incidência de fatores múltiplos nas ações do homem credenciam os resultados para análises profundas acerca do seu alcance, possibilitando várias nuances históricas, sociais, políticas e econômicas passiveis de análise.

É um mundo no qual o homem compete por espaço e sobrevivência não mais com os animais (que lhe serviam de alimento), mas com fatores internos e externos, por vezes imateriais, que criam a luta diária em campos amplos e pouco compreensíveis.

Dentro desse quadro, as pessoas sentem-se desamparadas, o que também constitui uma incitação que adotem, em seus comportamentos ordinários, práticas que alguns decênios atrás eram moralmente condenadas. Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado com a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social. (Santos, M., 2000, 38).

Tal é este momento que a humanidade se encontra que, por volta dos anos 1970, a hegemonia empresarial passou a ditar os ritmos em que as coisas caminhariam, sobretudo pela utilização tecnológica e da superveniência neoliberal econômica que tornou a informação instantânea e globalizada, mas sem atingir todos os lugares com a mesma intensidade e maneira.

Este domínio de novos atores, em termos globais, coloca não mais os Estados como principais vetores da vida em sociedade, mas sim as grandes corporações que passam a ditar os aspectos da vida humana, desde a formação social até os modos de se portar, acabam passando não pelo regramento público e sim do privado-empresarial.

Quando esta revolução tecno-científica dos anos 1970 se transmutou de um modelo empresarial para os ditames do Estado, a sociedade se viu envolta em políticas que, ao contrário de exaltar o bem público, se voltava ao bem privado e, como vimos, não se deve entender este bem apenas como instrumentos materiais, mas também imateriais, que fortificam a ideologia da não-política como maneira de favorecer as corporações dominantes das técnicas de produção, sociais e políticas.5 Axiomas Pós-Modernos

Ao nos propormos analisar a pós-modernidade e a banalização de certos valores na atualidade mundial, por evidência estamos entrando em um campo complexo e com inúmeros fatores que podem levar à ruína os estudos.

Antes de qualquer coisa, devemos afirmar sem delongas que cada nação produzirá ao longo de sua história valores próprios que unem sua sociedade. Ainda que por vezes esses princípios sejam parecidos, não podemos afirmar que serão sempre iguais, já que, como vimos antes, a pluralidade humana se iguala e se diferencia ao mesmo tempo, de maneira que a sua sociedade também o faz à nível estatal com os demais Estados.

Quando, então, tratamos de valores de uma dada sociedade, devemos entender como o conjunto de princípios, regramentos e ideias que recaem sobre aquele determinado povo em um território e o diferenciam em essência dos demais, porque, por mais “iguais” que possam ser, um catalão ou um basco não serão jamais espanhóis, isto é, por mais que estejam sob a égide de um único conjunto normativo geral contido no Reino de Espanha, as diferenças se tornam claras quando observadas de perto.

Mas, como podemos colocar os valores pós-modernos de maneira clara, a fim de adentrar finalmente nas banalizações existentes justamente por conta desses axiomas máximos da contemporaneidade? O sociólogo polonês Zygmunt Bauman pode nos responder, em parte, esta questão.

Qualquer valor só é um valor graças à perda de outros valores, que se tem de sofrer a fim de obtê-lo. Entretanto, você precisa mais do que mais falta. Os esplendores da liberdade estão em seu ponto mais brilhante quando a liberdade é sacrificada no altar da segurança. Quando é a vez de a segurança ser sacrificada no templo da liberdade individual, ela furta muito do brilho da antiga vítima. Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. (Bauman, Z., 1998, 10).

Afirmamos que Bauman responde em parte porque a questão é muito mais complexa que isso. Citamos acima o exemplo basco e catalão inseridos no Reino da Espanha sobre um mesmo conjunto de axiomas, mas se analisarmos a história veremos exatamente o que o sociólogo propôs: a perda das guerras internas por bascos e catalães que os fizeram ser anexados e perderem seus valores individuais na troca da pretensa unicidade nacional.

Parece complexo e contraditório com o que afirmamos antes, mas tentaremos explicar sob um outro viés. Quando novos valores surgem o seu trampolim para o sucesso é justamente acabar com os antigos valores, o que não significa que tais valores serão inteiramente e puramente novos, uma vez que conterão resquícios dos antigos estigmas destruídos.

Boaventura de Sousa Santos nos mostra que a convergência entre os paradigmas modernos e o capitalismo tornaram a crítica paradigmática algo praticamente inexistente, que se baseia no velho para alcançar o novo, isto é, o novo já nasce não como uma resposta ao velho, mas sim como um novo velho paradigma, tornando acrítica a crítica da crítica.

Devemos, assim, nos ater um momento no pensamento do sociólogo português, mais precisamente acerca de sua posição sobre a transformação das energias emancipatórias do ser humano em energias puramente regulatórias, fazendo com que o homem não procure mais se emancipar de sua condição, mas simplesmente se regular.

Deixou de ser possível conceber estratégias emancipatórias genuínas no âmbito do paradigma dominante já que todas elas estão condenadas a transformarse em outras tantas estratégias regulatórias. Em face disto o pensamento crítico para ser eficaz tem de assumir uma posição paradigmática: partir de uma crítica radical do paradigma dominante tanto de seus modelos regulatórios como dos seus modelos emancipatórios para com base nela e com recurso à imaginação utópica desenhar os primeiros traços de horizontes emancipatórios novos em que eventualmente se anuncia o paradigma emergente. (Santos, B.S., 2002, 16).

Vamos voltar ao nosso ponto central convergindo as ideias dos dois sociólogos abordados, principalmente porque as duas acepções trazem exatamente as bases daquilo que pretendemos analisar com a inclusão dos atores sociais e jurídicos, em momento oportuno.

Se, como afirmou Bauman, temos que novos valores somente surgem quando os velhos morrem, as concepções surgidas no momento pós-guerra procuraram defrontar aquilo que até então colocavam-se como valores negativos dos regimes totalitários.

Mais: os novos valores surgem como críticas ao sistema antigo, de modo que Boaventura acerta ao dizer, de igual maneira, que os novos paradigmas não surgem como modelos críticos, mas sim como formas de manter o velho com outra roupagem, já que não fazem outra coisa que não seja regular a sociedade nestes supostos novos valores, ao invés de se valer da emancipação que teoricamente se propõe.

Na luta contra a realidade protegida pelo senso comum, a razão emancipadora parte de uma posição de inferioridade, estando condenada a ressuscitar as ansiedades e a incerteza aterradora do destino humano, que o senso comum põe tão tranquilamente em repouso ou sela hermeticamente. (Bauman, Z., 1977, 130).

Ponto interessante que devemos nos ater um momento. A razão humana é a causa da emancipação do homem, pois é o racionalismo acerca de sua condição e dos seus pares, além da visão geral do mundo ao entorno que faz o homem se libertar da alienação e, ao invés de se regular com o novo velho novo, realmente realizar uma operação na qual há o ato emancipatório.

Apesar de, como tratamos no item anterior, os fatores essencialmente humanos terem sido transferidos do homem e do Estado aos atores hegemônicos que se transformam de “pessoas jurídicas” em “pessoas naturais”, é certo que somente com a tomada de consciência emancipatória o homem poderá sair do limbo no qual se atolou.

Estamos, por isso, diante de uma crise estrutural nos axiomas essenciais da contemporaneidade. Não se está saindo do lugar, apesar de teorias e mais teorias que surgem com o intuito de aplacar conceitos que deveriam ser novos e emancipatórios, mas que consolidam o antigo sistema regulatório, sendo uma condição perfeita para a atualidade empresarial.

A prevalência dos ditames empresariais em detrimento do bem público é um mal inerente da pós-modernidade. A autonomia, pelo que percebemos, não é mais dos seres humanos, que interagiam com sua liberdade, mas quem ganha agora autonomia e controle do meio estatal são justamente as empresas e grandes corporações. Os homens, antes livres, passam a estar presos aos ditames do mercado consumidor, que orienta cada passo da pós-modernidade.

Poucos de nós se lembra hoje de que o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como instrumento manejado pelo estado a fim de reabilitar temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo... Os dispositivos da previdência eram então considerados uma rede de segurança, estendida pela comunidade como um todo, sob cada um dos seus membros – a todos fornecendo a coragem para enfrentar o desafio da vida, de modo que cada vez menos membros precisassem algum dia de utilizá-la e os que o fizessem a utilizassem com frequência cada vez menor. (Bauman, Z., 1998, 51).

Se o Estado de Bem-Estar Social se caracterizou pela segurança da sociedade, ou seja, o Estado sendo o provedor da sociedade quando necessário, agora temse as empresas, corporações e o neoliberalismo estatal como fundamentos da segurança social necessária para sua subsistência.6

Contudo, é de suma importância fazer um adendo acerca desse modelo estatal, uma vez que “o estado de bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coletivo” (Bauman, Z., 1998, 51).

Esta conclusão é de suma importância. O Estado de Bem-Estar Social não advém da caridade, mas por ser um direito do cidadão inserido nesta nação. É um múnus público no qual a sociedade recebe do Estado aquilo que lhe é necessário e quando preciso.

Não se faz aqui uma defesa do estado de bem-estar social em detrimento do neoliberalismo e vice-versa. O que se pretende é mostrar como os axiomas da pós-modernidade, sobretudo influenciados pelos vetores sociais e políticos do mundo pós-segunda guerra fizeram o foco mudar do público para o privado, do homem enquanto ser político para as empresas enquanto fomentadores do sistema estatal.

A “desregulamentação” é demandada porque os poderosos não querem ser “regulados” — ter sua liberdade de escolha limitada e sua liberdade de movimento restrita; mas também (talvez principalmente) porque já não estão interessados em regular os outros. O serviço e o policiamento da ordem viraram uma batata quente alegremente descartada pelos que são suficientemente fortes para livrar-se da incômoda sucata, entregando-a de pronto aos que estão mais abaixo na hierarquia e são fracos demais para recusar o presente venenoso. (Bauman, Z., 2003, 42).

Estamos diante de um cenário no qual os poderosos procuram de todas as formas não ter sua liberdade tolhida, ainda que para isso a liberdade da maioria o seja, de modo que caímos novamente na questão trabalhada acima sobre a neutralidade na democracia: o fato de que poucos vivem a liberdade porque os demais não são livres.

Na amplitude do conceito de globalização, veremos que tal fato não se relaciona apenas e tão somente com o “boom” do desenvolvimento tecnológico e científico das últimas décadas, muito embora seja bastante latente a sua preponderância nos eventos que fizeram do Estado um mero observador em detrimento dos agentes hegemônicos dominantes.

A liberdade, antes considerada um conceito essencialmente humano (tal qual a política), não depende mais da vontade do ser humano e da regulação social do Estado (ideia geral do contratualismo presente em Hobbes, Locke e Rousseau), mas dependente de uma vontade que não está ligada ao homem, seja por sua individualidade, seja pelo bem comum estatal.

Se a Idade Moderna e o Iluminismo transformaram aquele período no famoso “Século das Luzes”, hoje o mundo caminha de forma a apagar todas essas luzes, vez que, ao se esquecer, querendo ou não, o fator humano, a própria ideia de sociedade global e humanizada, atuando de acordo com princípios básicos e que levam à política humana (como deveria ser com os direitos humanos), deixa de existir, ou melhor, passa a ser secundário aos interesses da hegemonia principal empresária.

Banalização Política: O Que Esperar da Sociedade e do Direito?

Temos, então, de nos lembrar até aqui de dois pontos centrais que serão preponderantes nas próximas linhas desta análise, pois sem eles não compreenderemos a crítica na qual se funda a atualidade global.

O primeiro deles diz respeito ao fato de que os axiomas públicos estão sendo constantemente deturpados e adaptados de acordo com interesses outros que se revertem à esfera do privado (e neste caso não tratamos do privado humano, mas sim do privado empresarial), com a busca pela valorização do pós-moderno baseada no consumo e na revolução tecno-científica das grandes corporações dominantes.

O segundo ponto refere-se à impossibilidade de, na maioria dos casos, a crítica se fundar em algo verdadeiramente novo e sair do domínio regulatório e passar a ser algo igualmente emancipatório, vez que em todos os casos, desde a mínima ação humana até os mais altos graus de sua razão voltada ao bem comum passam, de alguma forma, pelos interesses privados dessas empresas, de modo a formar um novo velho novo sistema.

Todo esse desenrolar de acontecimentos cria no mundo paradigmas que parecem intransponíveis quando analisados sob a ótica da desumanização do homem. Ao considerarmos o homem um ser social, sua dependência individual e gradual à multidão da sociedade se apresenta como uma necessidade e essa situação força o homem a seguir os critérios objetivados por ela.7

Segundo Bauman, todo esse ideário instituído pela “nova ordem mundial” criaria, outrossim, uma “desordem mundial”, na qual os mecanismo se confundem e criam no imaginário humano situações diversas das reais.

A “nova desordem mundial” dos dias de hoje não pode ser explicada meramente pela circunstância que constitui a razão mais óbvia e imediata da sensação de pasmo e perplexidade: a saber, a confusão de “dia seguinte” produzida pelo fim abrupto do Grande Cisma e o súbito colapso da rotina política dos blocos de poder — mesmo que tenha sido esse colapso que deu o alerta da “nova desordem”. A imagem da desordem global reflete, antes, a nova consciência (facilitada mas não necessariamente causada pela morte súbita da política de blocos) da natureza essencialmente elementar e contingente das coisas que anteriormente pareciam tão firmemente controladas ou pelo menos “tecnicamente controláveis”. (Bauman, Z., 1999, 57).

Esses fatores externos que influem no interno humano são fabricados e frutos de uma globalização que procura colocar as tecnologias como modelos controláveis da vida em sociedade, quando na verdade veremos que a vida em sociedade se torna controlável por estas novas invenções.

As tecnologias sempre existiram, é fato. As guerras foram vencidas pela força

dos homens e pelos materiais que estes dispunham para manter seu exército, assim como a produção agrícola e industrial, tanto do passado como do presente, pressupõem o uso lógico de ferramentas inovadoras.

Não obstante, o controle incontrolável da desordem mundial passa por essas tecnologias e, por evidência, pelas empresas produtoras e prestadoras desses serviços, fazendo com que a informatização ganhe respaldo maior do que o conhecimento, isto é, a racionalização dá lugar à meras informações que, ao contrário de emancipar o ser humano, o escraviza em ideias reguladoras intermináveis.

É uma situação na qual o poder decisório não mais se encontra nas mãos dos Estados e passam a ser sustentáculo daqueles que controlam a indústria e “o poder consiste na tomada de decisões e pertence aos que as tomam. E assim o poder pertencia aos gerentes”. (Bauman, Z., 2003, 40).

Os detentores do poder não têm o que temer e assim não sentem necessidade das custosas e complicadas “fábricas de obediência” ao estilo panóptico. Em meio à incerteza e à insegurança, a disciplina (ou antes a submissão à condição de que “não há alternativa”) anda e se reproduz por conta própria e não precisa de capatazes para supervisionar seu abastecimento constantemente atualizado. (Bauman, Z., 2003, 41-42).

Jogar com a insegurança é comum quando falamos dos agentes hegemônicos, já que a submissão às condições previamente estabelecidas por estes mesmos atores não disciplinam a coletividade nos conformes de sua sociabilidade, mas sim nos conformes de suas determinações, visando, igualmente sua prevalência em detrimento dos homens.

Com relação a esse assunto, podemos observar a desumanização dos direitos humanos, decorrentes justamente do enfrentamento outro dessas questões que, ao versarem sobre um ser humano imputado pelos axiomas externos que lhe são impostos por “não haver alternativa”, transforma-se em tudo, menos direitos inerentes ao homem.

Aliás, os axiomas devem ser tratados com especial atenção, isto porque passaram a ser realmente valorados e quantificados, ou seja, a globalização e a desordem mundial inseriram um valor monetário, que pode ser avaliado em dinheiro e não mais de acordo com os princípios regentes do homem.

Como isso é possível? Simples: ao tornar todas as pessoas consumidoras e, mais do que isso, ao tornar tudo no mundo consumível e passível de “preçonificar”, o consumismo dominou todas as entranhas sociais, políticas e econômicas, tornando os axiomas tão supérfluos quanto o mais banal dos produtos consumidos.

A opacidade das instituições sociais, a ilusão ótica da sua autonomia, está em paralelo com o seu afastamento para além do alcance da experiência do senso comum. As modalidades do indivíduo como produtor e consumidor ainda são visíveis, de uma perspectiva do senso comum, mas não o elo que as une. Todo o vasto espaço social que se estende e medeia entre o esforço produtivo e a satisfação do consumidor só entra no domínio da experiência do senso comum sob a forma de “valor de troca” e “dinheiro” — o primeiro representando e ocultando a intrincada teia da dependência do indivíduo às atividades; dos outros, e o segundo resumindo o poder que o indivíduo possa ter sobre estas atividades. A única informação que o senso comum fornece em tais circunstâncias é que, dando mais dinheiro, o indivíduo pode apropriar-se de mais valores de troca. O único conselho que o senso comum pode dar é que o indivíduo deve fazer todo o possível para obter mais poder (— dinheiro), a fim de ganhar mais liberdade (— valores de troca que estão ao seu alcance e, portanto, subjugados e domesticados). (Bauman, Z., 1977, 140).

Em outras palavras, podemos sintetizar esta afirmação no fato de que os valores, tais quais os seres humanos, viraram objetos, que podem ser qualificados e quantificados conforme a avaliação do mercado.

Ao identificarmos que tudo, até mesmo os valores e o ser humano, se tornaram produtos colocados em exposição na atualidade global, devemos nos ater ao discurso que envolve esses “objetos”, tanto materiais como imateriais.

Tais elementos estão imbuídos de vetores e fatores ideológicos que comandam o mercado, de modo que, conforme analisamos outrora, as grandes corporações se revestem como verdadeiros atores hegemônicos e tomam para si o papel antes pertencente ao Estado.

Se analisarmos por este viés, podemos realizar a seguinte comparação que, embora simplória, reflete bem a complexidade da situação atual: os Estados se tornaram as corporações, que ditam e estabelecem os regramentos devidos, enquanto, de outra feita, o ser humano se transforma em um objeto valorado, apesar de continuar sendo homem, mas de forma alienada.

Os objetos são coisas, são reais. Eles se apresentam diante de nós não apenas como um discurso, mas como um discurso ideológico, que nos convoca, malgrado nós, a uma forma de comportamento. E esse império dos objetos tem um papel relevante na produção desse novo homem apequenado que estamos todos ameaçados de ser. [...] Uma das grandes diferenças entre o mundo de há cinquenta anos e o mundo de agora é esse papel de comando atribuído aos objetos. E são objetos carregando uma ideologia que lhes é entregue pelos homens do marketing e do design ao serviço do mercado. (Santos, M., 2000, 51).

A esfera pública não existe mais na vida direta do individuo, uma vez que relegada a fatores e axiomas outros que não guardam relação com o bem comum e, por isso, com a coletividade, gerando, pois, o distanciamento do Estado enquanto ideia de união de homens em prol do bem comum e chegando ao ideal empresarial, que não se associa com os interesses primordiais da vida cotidiana do homem inteiro.8

O mercado de consumo vai além da simples conjectura da mais brilhante ideia do capitalismo, incidindo desde a mais-valia até a detenção dos meios de produção, e fazendo a sociedade refém dos produtos e serviços.

Todos esses fatores criam relações sociais instáveis, sejam elas de trabalho ou voltadas ao ser político. A centralização no mercado consumeirista traz consigo um fator ideológico, que mexe com a vida cotidiana das pessoas que, instadas ao consumo desenfreado, se desapegam das funções essenciais enquanto seres humanos e se adaptam às necessidades das empresas.

Esta questão, porém, é primordial para o sucesso da empreitada de transformação da sociedade, na mudança dos atores políticos humanos para os atores hegemônicos transnacionais.

Um dos elementos, ao mesmo tempo ideológico e empiracamente existencial, da presente forma de globalização é a centralidade do consumo, com o qual muito têm a ver a vida de todos os dias e suas repercussões sobre a produção, as formas presentes de existência e as perspectivas das pessoas. Mas as atuais relações instáveis de trabalho, a expansão de desemprego e a baixa do salário médio constituem um contraste em relação à multiplicação dos objetos e serviços, cuja acessibilidade se torna, desse modo, improvável, ao mesmo tempo que até os consumos tradicionais acabam sendo difíceis ou impossíveis para uma parcela importante da população. É como se o feitiço virasse contra o feiticeiro. (Santos, M., 2000, 161-162).

Não se pode esperar, com isso, que a sociedade permaneça e aceite passivamente que atores hegemônicos estranhos ao próprio corpo humano e ao aparelhamento estatal ditem as regras gerais da coletividade.

A ideologia se reveste de caracteres valorativos que atingem ao homem como não deveria atingir, ou seja, a carga de valores que o homem recebe é aquela na qual o deixará cada vez menos humano ao passo em que, ao mesmo tempo, o tornará cada vez mais objeto e, portanto, alienado.

Por isso, devemos considerar que não existem verdades matemáticas absolutas quando tratamos do pensamento e da razão humana e os questionamentos são mais do que necessários, mas também inerentes nesta sociedade que quanto mais caminha à globalização, mais se desumaniza.

O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença entre sina e destino, entre andar à deriva e viajar. Questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos. (Bauman, Z., 1999, 11).

Questionar é o primeiro passo na tentativa de libertação da alienação advinda da transformação do ser humano em objeto e do Estado em mero serviçal dos desígnios das grandes corporações.

Neste sentido, espera-se que o direito e não apenas os direitos humanos, mas sim o orbe jurídico como um todo, de uma forma geral, que possa ser uma via das muitas que podem surgir e visem o questionamento crítico da situação em que a sociedade mundial se encontra, em total crise.

A globalização se refere ao que acontece no todo e não apenas no particular, em que a ação isolada de um único agente não atingirá grau de satisfação de libertação. A ideia de globalização se encontra numa ampla e vasta terra de ninguém, na qual as forças anônimas dominam as ações.9

Quando a ideia de consumo permanece como sendo a principal (e por vezes) única saída ao ser humano, verificaremos que ele assume papel-chave na sociedade quando o homem troca o ideal de trabalho pelo de consumo.

O “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho, como insiste Mary Douglas, “a menos que saibamos por que as pessoas precisam de luxo [ou seja, bens que excedem as necessidades de sobrevivência] e como os utilizam, não estaremos nem perto de considerar com seriedade os problemas da desigualdade”. (Bauman, Z., 2008, 41).

Um dos princípios mais lógicos e essenciais do capitalismo se refere justamente a este enaltecimento do consumo exacerbado por parte da sociedade global, que é a origem da desigualdade existente nesta sociedade.

Quando temos agentes hegemônicos comandando a sociedade de acordo com os seus interesses, não importa em qual tipo de Constituição o Estado se formou, seja uma tirania, uma aristocracia ou uma democracia, em todos eles as empresas ditarão as regras e o real comando não virá de outra espécie que não seja o lucro, que se torna a exasperação do bem comum.10

A sociedade se torna trivial e supérflua, de modo que seus valores, suas aspirações e ideários banalizados ficam relegados não ao que podem fazer, mas sim ao que o mercado oferecer. A quebra só poderá advir da tomada de consciência e do fim da alienação neste sentido.

Muito se pode discutir acerca do alcance do mercado de consumo, isto é, se as pessoas atingidas estão mais ou menos felizes vivendo nesta situação de anomia, de vazio jurídico, político e social, mas não é o que pretendemos aqui analisar por sua amplitude e controvérsias que giram ao seu redor.

Se a revolução consumista líquido-moderna tornou as pessoas mais ou menos felizes do que, digamos, aquelas que passaram suas vidas na sociedade sólidomoderna dos produtores, ou na era pré-moderna, é uma questão tão controversa (e, em última instância, conflituosa) quanto possível, e muito provavelmente continuará assim para sempre. (Bauman, Z. 2008, 59).

Tudo isso deve ser levado em consideração quando verificamos o estágio atual da sociedade pós-moderna. Conflitos entre a felicidade e a infelicidade sempre existirão, não se pode olvidar de tal fato, mas as causas, aquilo que traz ou não felicidade, mudam e se transformam constantemente, sendo mais voláteis do que a própria ideia de consumismo desenfreado.11

Os axiomas novamente entram em cena, vez que ficam no meio desse fogo cruzado entre ideias de consumismo jogadas pelos agentes hegemônicos e a tentativa de se soltar dessas amarras e buscar a sua liberdade.

Sobre a felicidade, devemos lembrar-nos do utilitarismo de Jeremy Bentham, no qual o ser humano sempre buscará aquilo que lhe traz maior felicidade, de modo que, em trazendo felicidade, será útil para a sociedade.

O utilitarismo procura mostrar-se como uma ciência da moralidade baseada na quantificação, na agregação e no cômputo geral da felicidade. Ele pesa as preferências sem as julgar. As preferências de todos têm o mesmo peso. Essa proposta de não julgamento é a origem de grande parte de seu atrativo. E a promessa de tornar a escolha moral uma ciência esclarece grande do raciocínio contemporâneo. Para agregar valores, no entanto, é necessário pesá-los todos em uma única balança, como se tivessem todos a mesma natureza. A ideia de Bentham sobre a utilidade nos oferece essa moeda comum. (Sandel, M. J., 2012, 55).

Este princípio é complicado, pois, ao que discutimos acima, se se considerar que o consumismo traz felicidade para certa sociedade, afirma-se igualmente que ele é útil à coletividade, atingindo o bem comum.

Mas como podemos assim considerar se os atores hegemônicos dominam o Estado e até determinam o que será felicidade para o homem? Não se pode desconsiderar esse fator, no qual os agentes hegemônicos delimitam o que será a felicidade e, portanto, útil para a sociedade, mas que acaba ensejando a dilapidação do bem comum, do Estado e da essência humana.

Nossa ideia é que não necessariamente o que dizem ser útil à sociedade trará felicidade ao homem e por tal motivo deve ser aplicado como um axioma instransponível e inquebrantável. Toda ideia que envolva o bem comum deve ser sobrepesada com os valores inerentes ao ser humano e à formação da sociedade, não podendo ser aceitos como verdades absolutas, mas ao mesmo tempo analisados para considerarmos como axiomas puramente humanos e não carregados de fatores externos influenciados pelos agentes hegemônicos.

Não podemos deixar de considerar que quando todo e qualquer cidadão deixa o Estado de lado em nome de interesses outros este Estado estará cada vez mais próximo da ruína, pois aqueles que deveriam provê-lo não o fazem.

Logo que o serviço público deixa de ser a principal ocupação dos cidadãos, e estes preferem seu interesse, o Estado se aproxima da sua ruína. É preciso ir ao combate, e então pagam às tropas e deixam-se ficar em casa. [...] Num Estado realmente livre, os cidadãos fazem tudo com seus braços e nada com sua bolsa. Longe de pagar para eximir-se de seus deveres, pagarão para cumpri-los. (Rousseau, J. J., 1999, 104).

Não afirmarmos aqui que as pessoas não podem pensar e agir de acordo com sua liberdade, mas sim que o serviço público propriamente dito não pode ser privatizado para interesses outros que não sejam os públicos. Quando os cidadãos o fazem sem pensar primeiro no bem comum e depois no resultado que trará ao seu individual, o Estado não suportará por muito tempo.

É o que vemos quando se transmuta do Estado aos agentes hegemônicos as atribuições sociais, políticas e jurídicas, convalidando não o progresso e a nova ordem mundial, e sim o fim do Estado como figura pública e a total desordem global.

A liberdade não se meça pelo que cada um pode ou não fazer (ou estaríamos em um estado de natureza hobbesiano), mas sim o que cada um faz com sua liberdade voltada ao Estado, considerado enquanto bem comum.

Considerações Finais

Pelo que podemos considerar ao longo deste estudo, torna-se claro que a situação atual é grave e a crise existencial do Estado e do ser humano deve ser considerada no seu todo como um fator a ser superado.

Quando se deixa relegar o papel público aos agentes hegemônicos particulares, tanto o Estado como o homem se tornam marionetes num palco no qual as principais ideias discutidas desde que o mundo é mundo os colocam como preponderantes à existência geral.

Não se trata de abandonar todas as formas tecnológicas criadas na pós-modernidade, até mesmo porque somente a partir do uso das tecnologias que o homem pôde se desenvolver, tanto nas ferramentas de trabalho como nas questões estritamente ligadas aos seus axiomas e aos valores do Estado.

A autocrítica é essencial para a superação dessa crise. O atual sistema impede que esse conhecimento lógico se desenvolva em comum com a racionalidade, estabelecendo que não seja necessário pensar quando outros podem fazê-lo em seu lugar, colocando tudo pronto e acabado.

O homem só é homem quando deixa sua individualidade transparecer, isto é, as características que o tornam único e o distingue na sociedade, ao mesmo tempo em que o torna igual aos demais, vez que também estes são seres pensantes.

Quando é o individualismo que aparece no lugar da individualidade, não se tem a identidade de cada um e sim uma identidade única, sem qualquer referência com o que deveria ser a realidade humana.

A análise crítica que propusemos aqui pressupõe que é necessário não apenas o autoconhecimento, como também a consciência de que a crise não escapa nem a estes que a enxergam, cabendo a eles, entretanto, pensar nos meios de libertação do homem e do Estado dessa epidemia global que cada vez mais se aprofunda.

Zygmunt Bauman nos proporciona, com isso, a possibilidade de analisarmos as nuances gerais que se encontra a sociedade global, de modo que a crítica essencial para sair dessa situação somente é possível pelo próprio homem e pelo homem.

Referencias

Agamben, G. (2004). Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo.

Arendt, H. (2013). O Que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Arendt, H. (2007). A Condição Humana (10ª Edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Arendt, H. (1989). As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.

Bauman, Z. (2008). Vida Para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Bauman, Z. (2003). Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Bauman, Z. (1999). Globalização: As Consequências Humanas.Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Bauman, Z. (1998). O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Bauman, Z. (1977). Por uma Sociologia Crítica – Um Ensaio Sobre Senso Comum e Emancipação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lafer, C. (1991). A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras.

Rousseau, J. J. (1999). O Contrato Social: Princípios de Direito Político. Rio de Janeiro: Ediouro.

Sandel, M. J. (2012). Justiça – O Que é Fazer a Coisa Certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Santos, B. S. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência – Para Um Novo Senso Comum: a Ciência, o Direito e a Política na Transição Paradigmática. São Paulo: Cortez.

Santos, M. (2000). Por Uma Outra Globalização – Do Pensamento Único à Consciência Universal. São Paulo: Record.

Notas

1 O filósofo italiano Giorgio Agamben trabalha o estado de exceção em suas mais diversas formas e nuances. Dentre os termos utilizados em sua teoria, destaca-se a “anomia do vazio”, no qual a lei fica suspensa, ao mesmo tempo em que é interior e exterior ao ordenamento jurídico. Quando trazemos tal pensamento para a questão acima tratada vemos que não há uma certeza sobre o que é a aplicabilidade dos direitos humanos, muito menos quem é o ator principal, se o Estado ou o interesse global das grandes corporações: “Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica”. (Agamben, G. 2004, 39).

2 Neste sentido: “No homem, a alteridade que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares. Essa distinção singular vem à tona no discurso e na ação. Através deles, os homens podem distinguir-se, ao invés de permanecerem apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Essa manifestação, em contraposição à mera existência corpórea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano”. (Arendt, H., 2007, 189).

3 Vale analisarmos o que o totalitarismo se caracteriza pela concentração total do poder, além da impossibilidade de coexistência, diferentemente do que pode-se ver em tiranias e ditaduras: “O totalitarismo representa uma proposta de organização da sociedade que almeja a dominação total dos indivíduos. Encarna, neste sentido, o processo de ruptura com a tradição, pois não se trata de um regime autocrático, que em contraposição dicotômica a um regime democrático busca restringir ou abolir as liberdades públicas e as garantias individuais. Trata-se, em verdade, de um regime que não se confunde nem com a tirania, nem com o despotismo, nem com as diversas modalidades de autoritarismo, pois se esforça por eliminar, de maneira historicamente inédita, a própria espontaneidade — a mais genérica e elementar manifestação da liberdade humana. Gera, para alcançar este objetivo, o isolamento destrutivo da possibilidade de uma vida pública — que requer a ação conjunta com outros homens — e a desolação, que impede a vida privada”. (Lafer, C., 1991, 117).

4 Na mesma toada: “O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e, em particular, dos Estados-nações europeus e do seu sistema partidário. A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo individuo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo contrário, demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria. A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação”. (Arendt, H., 1989, 362).

5 Neste sentido: “Nas condições atuais, e de um modo geral, estamos assistindo à nãopolítica, isto é, à política feita pelas empresas, sobretudo as maiores. Quando uma grande empresa se instala, chega com suas normas, quase todas extremamente rígidas. Como essas normas rígidas são associadas ao uso considerado adequado das técnicas correspondentes, o mundo das normas se adensa porque as técnicas em si mesmas também são normas. Pelo fato de que as técnicas atuais são solidárias, quando uma se impõe cria-se a necessidade de trazer outras, sem as quais aquela não funciona bem. Cada técnica propõe uma maneira particular de comportamento, envolve suas próprias regulamentações e, por conseguinte, traz para os lugares novas formas de relacionamento. O mesmo se dá com as empresas. É assim que também se alteram as relações sociais dentro de cada comunidade. Muda a estrutura do emprego, assim como as outras relações econômicas, sociais, culturais e morais dentro de cada lugar, afetando igualmente o orçamento público, tanto na rubrica da receita como no capítulo da despesa. Um pequeno grupo de grandes empresas que se instala acarreta para a sociedade como um todo um pesado processo de desequilibro”. (Santos, M., 2000, 67-68).

6 Senão vejamos o que nos diz Milton Santos acerca do Estado de Bem-Estar Social: “O que permanece como lembrança do Estado de bem-estar basta para contrariar as pretensões de completa autonomia das empresas transnacionais e contribui para a emergência, dentro de cada nação, de novas contradições. Como as empresas tendem a exercer sua vontade de poder no plano global, a luta entre elas se agrava, arrastando os países nessa competição. Trata-se, na verdade, de uma guerra, protagonizada tanto pelos Estados como pelas respectivas empresas globais, da qual participam como parceiros mais frágeis os países subdesenvolvidos”. (Santos, M., 2000, 54).

7 Se considerar a situação objetiva de dependência frente à (ir)racionalidade humana individual, teremos esta acepção: “É a dependência individual à multidão anônima de outros membros da sociedade que se lhe apresenta como ‘necessidade social’, como ‘situação objetiva’, contra a qual ele é forçado a medir os seus próprios motivos e intenções, e que lhe fornece os únicos critérios ‘objetivos’ de racionalidade desses motivos”. (Bauman, Z., 1977, 138).

8 Assim podemos citar: “A esfera ‘pública’ entra na experiência do senso comum do indivíduo como uma realidade superior, em forma de natureza, na medida em que foi removida da relação imediata com o indivíduo. Estendeu-se um novo reino entre o esforço criativo do indivíduo (a produção de objetos úteis pela transformação dos objetos naturais) e as atividades sustentadoras da vida humana (que ainda podem ser vistas como diretamente relacionadas com a vontade humana, como o reino, pelo menos parcialmente, da liberdade individual). Este reino, de fato, une as duas metades separadas do ciclo existencial, embora, na perspectiva da experiência individual, estas metades pareçam ser vítimas dos curtos-circuitos do dinheiro e do valor da troca. Quanto à sabedoria individual proveniente do senso comum, o dinheiro e os valores de troca equivalem ao reino misterioso, impenetrável em que os produtos do indivíduo desaparecem e de onde emergem artigos para o consumo do indivíduo. Mas o dinheiro e os valores de troca concorrem mais para obscurecer do que para determinar (e muito menos iluminar) o caráter social virtual deste reino: eles apresentam as relações sociais como econômicas. O papel da sociologia crítica é reivindicar esta substância social do mundo social”. (Bauman, Z., 1977, 141).

9 Em outras palavras: “Nossas ações podem ter e muitas vezes têm mesmo efeitos globais; mas não, nós não temos nem sabemos bem como obter os meios de planejar e executar ações globalmente. A ‘globalização’ não diz respeito ao que todos nós, ou pelo menos os mais talentosos e empreendedores, desejamos ou esperamos fazer. Diz respeito ao que está acontecendo a todos nós. A ideia de ‘globalização’ refere-se explicitamente às ‘forças anônimas’ de von Wright operando na vasta “terra de ninguém” — nebulosa e lamacenta, intransitável e indomável — que se estende para além do alcance da capacidade de desígnio e ação de quem quer que seja em particular”. (Bauman, Z., 1999, 59).

10Vale analisarmos, nas palavras de Zygmunt Bauman, o que o mercado consumidor faz para se alimentar no acirrado modelo capitalista: “A economia consumista se alimenta do movimento das mercadorias e é considerada em alta quando o dinheiro mais muda de mãos; e sempre que isso acontece, alguns produtos de consumo estão viajando para o depósito de lixo. Numa sociedade de consumidores, de maneira correspondente, a busca da felicidade – o propósito mais invocado e usado como isca nas campanhas de marketing destinadas a reforçar a disposição dos consumidores para se separarem de seu dinheiro (ganho ou que se espera ganhar) – tende a ser redirecionada do fazer coisas ou de sua apropriação (sem mencionar seu armazenamento) para sua remoção – exatamente do que se precisa para fazer crescer o PIB. Para a economia consumista, o foco anterior, hoje quase abandonado, prenuncia a pior das preocupações: a estagnação, suspensão ou desgaste do ardor de comprar. O segundo foco, contudo, traz um bom prognóstico: outra rodada de compras. A menos que complementado pelo impulso de se desfazer e se descartar, o impulso da mera aquisição e posse armazenaria problemas para o futuro”. (Bauman, Z., 2008, 51-52).

11 Neste sentido: “No mundo em que vivemos no limiar do século XXI, as muralhas estão longe de ser sólidas e com certeza não estão fixadas de uma vez por todas; eminentemente móveis, parecem aos passantes divisórias de papelão ou telas destinadas a serem reposicionadas mais e mais vezes segundo mudanças sucessivas de necessidades ou caprichos. Alternativamente, pode-se dizer que há hoje meadas de algodão onde ficavam as gaiolas de ferro do tempo de Max Weber; os golpes passam por elas e a abertura produzida se fechará no momento seguinte. Pode-se também pensar num mundo que deixou de ser um árbitro rigorosamente imparcial e se tornou um dos jogadores que, como todos os jogadores adeptos aos truques, esconde a mão e espera para trapacear se tiver a chance”. (Bauman, Z., 2003, 45).