As questões constitucionais do Império: o contexto jurídico e político refletido nos contos “Fulano” e “Um homem célebre”, de Machado de Assis
The
constitutional issues of the Empire: the legal and political context
reflected in the stories “Fulano” and “Um homem
célebre,” Machado de Assis
Tito
Lívio Cabral Renovato Silva
Ä
Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB) - Campus I.
titoliviocabral@ig.com.br
Recepción:
14/03/2015
Aceptación:
15/05/2015
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar as questões constitucionais que ocorreram na segunda metade do século XIX, a exemplo da “questão religiosa”, “questão militar” e “abolição da escravatura”, que levaram ao fim do regime monárquico no Brasil. Iremos tratar do panorama histórico da época, a ordem jurídica vigente e as crises constitucionais do Império, onde analisaremos a Constituição de 1824 e seus artigos que abordam da divisão dos poderes e das funções concernentes ao Poder Moderador. Analisaremos todas essas questões através da visão de Machado de Assis refletida nos personagens dos contos “Fulano” e “Um homem célebre”, sob um ponto de vista interdisciplinar entre o Direito e a Literatura.
Palavras-Chave: Questões Constitucionais do Império, Machado de Assis, Direito e Literatura
Abstract This article will examine the constitutional issues that occurred in the second half of the nineteenth century, such as the “religious issue”, “military issue” and “abolition of slavery”, which led to the end of the monarchy in Brazil. We will treat the historical panorama of the time, the current legal and constitutional crises of the Empire, where we analyze the 1824 Constitution and its articles that discuss the division of powers and functions concerning the moderating power. Analyze all these issues by Machado de Assis vision reflected in the characters of the stories “Fulano” and “Um homem célebre”, under an interdisciplinary method, targeting the relations between Law and Literature.
Keywords: Constitutional Issues of the Empire, Machado de Assis, Law and Literature
Introdução
Joaquim Maria
Machado de Assis (1839-1908) é considerado um dos maiores
escritores da Literatura Brasileira. Desde sua primeira poesia
publicada em 1855, com o título “Ela”, até
seu último romance “Memorial de Aires” de 1908,
Machado contribuiu para a literatura com 9 romances e centenas de
contos, durante toda a sua trajetória, que é dividida
em duas fases: a fase romântica e a fase realista, tendo como
marco a publicação do romance “Memórias
Póstumas de Brás Cubas” no ano de 1881.
Durante sua fase
produtiva, o Império brasileiro passou por várias
transformações políticas até sua queda em
15 de Novembro de 1889, com o golpe de estado que proclamou a
República. Como funcionário público e
jornalista, ele acompanhou os últimos momentos do governo do
imperador D. Pedro II. Sendo árduo observador da sociedade
carioca da segunda metade do século XIX, várias de suas
obras apresentam os reflexos dos momentos políticos do país.
No decorrer de sua
fase realista, o seu surto de criatividade foi expresso através
da publicação dos contos que escrevera para os jornais
nos quais trabalhava. Como o interesse do nosso trabalho é o
de estudar as crises constitucionais que levaram a queda da
Monarquia, sendo elas a questão religiosa, militar e a
abolição da escravatura, nada melhor do que analisar o
reflexo que produziram na literatura, a partir do ponto de vista de
um gênio como Machado de Assis, através de uma visão
interdisciplinar, que envolve os elementos que ligam o Direito e a
Literatura.
Para bem verificar o
que os efeitos dos fenômenos políticos e jurídicos
causaram no âmbito particular dos personagens da ficção
machadiana e o ponto de vista dos mesmos, acerca dos problemas que
vivenciaram, resolvemos escolher os contos “Fulano” e “Um
homem célebre”, ambos escritos na década de 1880.
Nesse período vigorava o Realismo literário ao qual
pertenciam os escritores brasileiros, incluindo seu precursor, que é
um dos objetos de nosso estudo. Com isso, analisaremos o contexto
histórico e a ordem jurídica vigente à época
e como esses aspectos influenciaram a formação da
narração dos dois contos de Machado de Assis analisados
neste trabalho, levando também em consideração a
realidade pessoal do próprio escritor como influência em
sua obra.
Panorama Histórico da obra machadiana
A fase realista da
obra de Machado de Assis é marcada com a publicação
do romance “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”, no ano de 1881. A essa época, a situação
política do país era controvertida. A partir de 1870,
com o fim da Guerra do Paraguai, iniciada em 1864, o regime
monárquico parlamentarista entrava num processo de crise, que
culminaria com a proclamação da República em 15
de Novembro de 1889. Alfredo Bosi tem uma visão mais ampla do
contexto que Machado queria expor em suas obras:
“Aquele quadro
social matizado de diferenças e assimetrias não é
interpretado pelo narrador machadiano como uma realidade puramente
local, um resíduo de atraso colonial que o bando de ideias
novas de Sílvio Romero iria superar para todo o sempre,
erguendo o Brasil à altura da Europa evolucionista, comtiana,
spenceriana, cientificista e republicana. A batalha ideológica
dos anos 70 não passa pelo centro vivo da ficção
machadiana, não é o seu espaço de significações
nem a sua referência polêmica. Outra é a direção
do seu olhar. O olhar com que Machado penetra aquele universo de
assimetrias tende a cruzar o círculo apertado dos
condicionamentos locais na direção de um horizonte ao
mesmo tempo individual e universal. Interessam-no cada homem e cada
mulher na sua secreta singularidade, e o ser humano no seu fundo
comum”. (Bosi, A., 2003, 154)
Já se formos
analisar utilizando o método da redução
estrutural de Antonio Candido, Luís Carlos Cancellier de Olivo
diz que:
“A redução
ocorre quando a forma e a estrutura do texto funcionam como mediação
entre a história ficcional e a história histórica.
(...) O conto de Machado é um duplo da realidade, um espelho
duplo da sociedade brasileira do século XIX. Sua forma e
estrutura estão de acordo com o que se passa no mundo real”.
(Olivo, L. C. Cancellier de, 2011, 91).
O objetivo do nosso
estudo é analisar as crises constitucionais que abalaram o
Império brasileiro, através dos reflexos que elas
causaram nos personagens e do ponto de vista que elas foram tratadas
na obra de Machado de Assis, mais precisamente nos contos “Fulano”
e “Um homem célebre”. Então, é
preciso compreender como era formada a ordem constitucional do
Império que duraram 65 anos a partir da outorga da
Constituição de 1824, norma ápice do ordenamento
jurídico da época. Segundo José Veríssimo,
contemporâneo de Machado, a respeito do estilo da narração
do escritor disse:
“Como o que
sobretudo lhe interessa é a alma das cousas e dos homens, é
ela que ele procura exprimir e que geralmente exprime com insigne
engenho e arte. Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura
fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o
nosso senso da íntima realidade. (Veríssimo, J.,1998,
442-443).
Na mesma linha de
entendimento, diz Luís Cancellier de Olivo:
“Mas Machado,
como ele mesmo fazia questão de frisar, não era um
realista do detalhe físico ou paisagístico.
Interessava-o muito mais a realidade da alma, da emoção,
do comportamento humano, a partir da qual ele construía
‘tramas complexas’ que refletiam ‘verdades
históricas’ ”. (Olivo, L. C. Cancellier, 2011,
21).
O principal ponto
que nos interessa, até o momento, no que diz respeito à
Constituição de 1824, é que ela introduziu no
país uma nova espécie de divisão de poder, o
chamado “Poder Moderador”, teorizado na França
pelo jurista Benjamin Constant, sob influência do bonapartismo
(Mello, 2008), mas que não obteve sucesso em seu país.
Vejamos o que diz José Octávio de Arruda Mello:
“Seu principal
intérprete, o pensador francês Benjamin Constant
(1767-1830), levantou a Teoria do Poder Moderador, por meio do qual
os três poderes da clássica formação de
Montesquieu seriam acrescidos de um quarto poder – justamente o
Moderador, destinado a assegurar o equilíbrio do sistema
político”. (Mello, J. O. de Arruda, 2008, 162).
De acordo com o art.
10 da Constituição Política de 1824, “os
Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição
do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o
Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial”.
Ainda em relação
ao Poder Moderador, o art. 98 da Constituição de 1824
explicava que:
“o Poder
Moderador é a chave de toda a organização
Política, e é delegado privativamente ao Imperador,
como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção
da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais
Poderes Políticos”.
Para compreender a
atuação do Imperador através dos poderes
delegados a ele, vejamos o comentário de José Afonso da
Silva.
“Ele influi
sobre o Poder Executivo pelo direito de escolher livremente seus
ministros de Estado e livremente demiti-los. (...) E como chefe do
Poder Executivo, que exerce por meio de seus ministros, dirige, por
sua vez, todo o mecanismo administrativo do país. Aqui, o Rei
reinava, governava e administrava, como dissera Itaboraí, ao
contrário do sistema inglês, onde vigia e vige o
princípio de que o Rei reina, mas não governa. (Silva,
J. A. da, 2010, 76)
A situação
em relação aos partidos políticos da época
era divida entre os dois maiores: o Partido Liberal e o Partido
Conservador. Os liberais criticavam as delegações que a
Constituição dava ao Poder Moderador, que era exercido
pelo Imperador Constitucional D. Pedro II.
“Os liberais,
Teófilo Ottoni, Tavares Bastos e o conselheiro Zacarias, este
no bem construído Da Natureza e Limites do Poder Moderador
(1860, - sempre a combateram de rijo. Essa a razão porque, no
Brasil do século XIX, a tensão jurídica e
institucional entre liberais e conservadores não arrefeceu.
Cada uma dessas facções com seu respectivo projeto de
poder”. (Mello, J. O. de Arruda, 2008, 162).
As divergências
entre liberais e conservadores era controversa, pois na opinião
popular, não havia diferença entre os Partidos
dominantes, Liberal e Conservador. Dizia-se que não havia nada
mais parecido com um conservador do que um liberal no poder. (Arruda,
Pilleti, 2001). A partir de 1847, a forma de governo passou a ser um
regime parlamentarista, inspirado no modelo do Reino Unido. Com isso,
nesse período entre 1870 e 1889, houve uma sucessão de
ministérios, presididos por liberais e conservadores. Segundo
Alfredo Bosi,
“O liberalismo
econômico funcionou muito bem, espessa e compactamente, como
ideologia e boa consciência, para os herdeiros das oligarquias
vitoriosas com a Independência e consolidadas pela preservação
da escravatura.” (Bosi, A., 2003, 60)
Entre 1880 e 1885, 7
ministérios se revezaram (Arruda, Pilleti, 2001). Da mesma
opinião sobre a queda de vários ministérios ao
longo de 30 anos, tem Oliveira Vianna.
“Os dois
velhos partidos do Império, como se vê, não
tinham opinião, como não tinham programas. O objetivo
era a conquista do Poder e, conquistado este, conservá-lo a
todo transe: nada mais. Era este o principal programa dos liberais –
como o era dos conservadores”. (Vianna, Oliveira, 2006, 19).
As sucessivas quedas
de ministérios tinham amparo na Constituição,
segundo a competência que ela dava ao Poder Moderador, que em
casos de conflito entre os Poderes Legislativo e Executivo, cabia ao
Imperador, orientado pelo Conselho de Estado, substituir o Ministério
ou dissolver a Câmara (Arruda, Pilleti, 2001).
As questões
que iremos tratar, as quais deram origem às crises da ordem
constitucional do Império são as chamadas “Questão
Religiosa”, “Questão Militar” e a abolição
da escravatura, ambas tratadas através dos seus reflexos na
vida particular dos personagens machadianos.
A primeira, a
“questão militar”, deu-se após o fim da
Guerra do Paraguai, no ano de 1870. Os ideais republicanos se
propagavam pelo país e foi a partir dos efeitos causados pela
Guerra do Paraguai, que eles tomaram mais adeptos e mais repercussão
dentro do cenário político brasileiro. Foi também
a partir do Manifesto Republicano de 1870, que a República
começou a ser defendida de forma sistemática. (Arruda,
Pilleti, 2001). Vejamos o que diz Oliveira Vianna, acerca da formação
do Partido Republicano:
O Partido
Republicano, tal como se organizou em 1870, foi, com efeito, nada
menos que uma pequena fração destacada do bloco do
Partido Liberal, que, como vimos, ante o golpe de 68, todo se
acendera de indignação flamejante. O velho partido
imperial se havia dividido em duas correntes: uma, violenta, radical,
ultrademocrática, onde os Ottoni punham a ardência e a
vibração do seu temperamento impetuoso; outra, branda,
moderada, ironizando o radicalismo da primeira e revelando mesmo um
aparente respeito à dinastia. (Vianna, Oliveira, 2006, 77).
Os ideais
republicanos se propagaram entre os militares através de
Benjamin Constant (1833-1891), que era seguidor das ideias de Auguste
Comte. O positivismo de Comte pregava, no campo da política,
uma república forte e centralizada. Em relação
ao positivismo, diz José Octávio de Arruda Mello:
Seu lema, - “o
amor como princípio, a ordem como base e o progresso como fim”
– chega a integrar a Bandeira do Brasil – ‘Ordem e
Progresso’ – por constituir a República desse país
movimento político impulsionado por jovens oficiais da Escola
Militar, adeptos do positivismo como o brasileiro Benjamin Constant
(18361891)”. (Mello, J. Octávio de Arruda, 2008, 155).
Em 1873, com a
Convenção de Itu em São Paulo, diversos
movimentos republicanos se uniram
para formar uma frente única contra o Governo Monárquico.
A partir daí, criou-se o PRP. Segundo Alfredo Bosi:
“A formação
de um partido liberal radical em 1868, foi precedida de declarações
de princípios abolicionistas e prérepublicanos; e, de
fato, já em 1870 uma ala dos progressistas fundava o Partido
Republicano, que operaria a fusão tática da
inteligência nova com o arrojo de alguns políticos de
São Paulo, interessados na substituição do
escravo pelo trabalho livre”. (Bosi, A., 1997, 163-164).
No entanto, as
lideranças republicanas eram os grandes fazendeiros de café
(Arruda, Pilleti, 2001). Estes estavam inconformados com o progresso
econômico através do início da produção
industrial no país e com o fim do tráfico negreiro
desde a década de 1850, além das leis que vinham sendo
publicadas para eliminar a escravatura, a exemplo da Lei nº 581,
de 4 de Setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós) e da
Lei nº 2040, 28 de Setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre).
Nesse sentido, diz
Alfredo Bosi:
“De fato, a
partir da extinção do tráfico, em 1850,
acelera-se a decadência da economia açucareira; o
deslocamento do eixo de prestígio para o Sul e os anseios das
classes médias urbanas compunham um quadro novo para a Nação,
propício ao fermento de ideias liberais, abolicionistas e
republicanas. De 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas
pela inteligência nacional, cada vez mais permeável ao
pensamento europeu que na época constelava em torno da
filosofia positiva e do evolucionismo”. (Bosi, A., 1997, 163).
Os referidos
partidos da época, liberal e republicano tinham a imprensa
para divulgar suas ideias e projetos, como meio de incitar o debate
político entre os membros da sociedade, a fim de obter os
resultados pretendidos. De acordo com Aurelino Leal,
“Em 1868 A
Opinião Liberal, desenvolvendo o programa do partido liberal
radical, emergido da dissidência dos progressistas, firmou mais
nitidamente as aspirações que esboçara em 1866,
pregando a descentralização, o Senado temporário
e eletivo, a extinção do Poder Moderador, a eleição
dos presidentes das províncias. A esse campeão se
juntou em 1869 o Correio Nacional, pregando as mesmas reformas,
inclusive a extinção do Conselho de Estado, e mais a
policia eletiva, a liberdade de associação e de cultos
(Leal, A., 1915, 183).
Foi importante
ressaltar as propostas de liberdade de expressão e de culto,
porque seguiremos o nosso estudo abordando outra questão
constitucional, neste caso, a “questão religiosa”.
A Constituição de 1824 assegurava a união entre
a Igreja e o Estado. O texto do art. 5 da referida norma dizia o
seguinte:
“A Religião
Católica Apostólica Romana continuará a ser a
Religião do Império. Todas as outras Religiões
serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
D. Pedro II nomeava
os bispos com a devida aprovação do Vaticano e ainda
remunerava os padres. Em 1872, os bispos de Olinda e Belém
ordenaram que as irmandades religiosas expulsassem as pessoas ligadas
à maçonaria das ordens terceiras, de modo que foram
presos por ordem imperial. Eles foram anistiados em 1875, contudo, as
relações entre a Igreja e o Estado não seriam
mais como d’antes e vários padres começaram a
apoiar a causa republicana (Arruda, Pilleti, 2001).
Em meio aos ideais
republicanos estava a questão da abolição da
escravatura, conforme já mencionamos anteriormente. Segundo
Alfredo Bosi (1997, 164), “o tema da Abolição é,
em segundo tempo, o das opções ideológicas do
homem culto brasileiro a partir de 1870”.
Um contemporâneo
de Machado, o jurista Sílvio Romero, discípulo de
Tobias Barreto e membro da chamada “Escola do Recife”,
faz uma ressalva a respeito desse período de crises do qual
estudamos:
“O decênio
que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no
século XIX constituíram a nossa vida espiritual. (...)
Até 1868, o catolicismo reinante não tinha sofrido
nestas plagas o mais leve abalo. (...) a autoridade das instituições
monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do
povo. (...) A Guerra do Paraguai estava ainda a mostrar a todas as
vistas os imensos defeitos de nossa organização militar
e ao acanhado de nossos progressos sociais desvendando
repugnantemente a chaga da escravidão”. (Romero, S., in.
Bosi, 1997, 165-166).
Com isso, através
da narrativa machadiana iremos analisar as questões
constitucionais do ponto de vista da ficção literária,
ao unirmos elementos que ligam a interpretação
literária à interpretação jurídica.
Vejamos o que pensa Luís Carlos Cancellier de Olivo:
“Cada tempo um
direito, cada tempo uma história, cada tempo uma história
do direito, uma nova geração, uma nova era, como dizia
Bobbio (1992). Os direitos são fatos históricos, são
construídos, aplicados, exercidos de uma ou de outra
determinada maneira. Machado tem esta mesma concepção e
descreve os fatos históricos com a linguagem da ficção,
ou seja, inventando um outro mundo, imaginário, que,
entretanto, reproduz as mesmas contradições e
idiossincrasias do mundo ‘real’”. (Olivo, L.
C.Cancellier, 2011, 84).
As questões
jurídicas que levaram a queda da Monarquia compreendiam pautas
concernentes à vida política dos cidadãos e,
através de uma interpretação política do
texto literário, como sugere Fredric Jameson (1992), essa
modelo torna-se essencial para estudar o Direito de determinada época
sob a ótica de outro canal de estudo, o texto literário.
Segundo Jameson:
“É
quando detectamos os traços dessa narrativa ininterrupta,
quando trazemos para a superfície do texto a realidade
reprimida e oculta dessa história fundamental, que a doutrina
de um inconsciente político encontra sua função
e sua necessidade.” (Jameson, F., 1992, 18).
A defesa desse
estudo do inconsciente político nos permite a compreensão
da realidade cultural da época em que viveu Machado de Assis
(Jameson, F., 1992). Na busca por uma nova hermenêutica,
Fredric Jameson (1992) diz que “apenas o marxismo permite fazer
um relato do mistério essencial do passado cultural”.
Em contrapartida,
Ronald Dworkin, defensor do liberalismo diz que os juristas deveriam
estudar a interpretação literária. Segundo ele: “as
proposições de Direito não são meras
descrições da história jurídica, de
maneira inequívoca, nem são simplesmente valorativas,
em algum sentido dissociado da história jurídica. São
interpretativas da história jurídica, que combina
elementos tanto da descrição quanto da valoração,
sendo porém diferente de ambas”. (Dworkin, R., 2000,
219).
Mesmo com ideias
opostos a teoria marxista da literatura, o pensamento de Dworkin
assemelha-se com o método da redução estrutural
de Antonio Candido, citado por Luís Cancellier de Olivo
(2011). Segundo Dworkin (2000, 221), “(...) na literatura foram
defendidas muito mais teorias da interpretação que no
Direito, inclusive teorias que contestam a distinção
categórica entre descrição e valoração
que debilitou a teoria jurídica”.
Dessa forma,
utilizando das proposições de diferentes teorias da
literatura, onde podemos fazer a ligação entre a
interpretação literária e a interpretação
jurídica e, consequentemente, estudar o que propõe este
trabalho.
O conto “Fulano”
O narrador convida o
leitor para assistir a abertura do testamento de seu amigo Fulano
Beltrão. É dessa forma que inicia-se a narrativa do
conto “Fulano”, escrito por Machado de Assis e publicado
na Gazeta de Notícias no dia 4 de Janeiro de 1884.
Posteriormente, Machado o selecionou e republicou na coletânea
“Histórias sem data”, no mesmo ano de 1884.
O que nos interessa
mais nesse conto é a forma como ele aborda a “questão
religiosa” e também, de forma amena, as outras questões
que levaram ao fim do Império. Segundo Luís Carlos
Cancellier de Olivo: “No conto Fulano, Machado de Assis
aproveita uma circunstância jurídica – a abertura
de um testamento, para abordar um dos episódios constitutivos
do enfraquecimento da monarquia, qual seja, a chamada “questão
religiosa”, que envolveu a disputa entre o clero e a
maçonaria.” (Olivo, L. C. Cancellier, 2011, 89).
Seguindo a narrativa
do conto, Fulano Beltrão faleceu no dia 2 de Janeiro de 1884,
com 60 anos de idade. Antes do ano de 1883, ele vivia recluso em sua
casa, que ficava próxima ao Jardim Botânico, vivendo
exclusivamente para sua mulher, d. Maria Antônia, e seus
filhos. O narrador não sabe explicar a causa da súbita
mudança de seu amigo, antes do fato que iria dar uma
reviravolta no seu modo de viver. Em seu aniversário de 40
anos, no dia 5 de março de 1864, um amigo de Fulano Beltrão
escreve uma nota no Jornal do Commércio, falando das virtudes
de seu amigo como exemplo de cidadão.
A partir daí,
ele fica na dúvida acerca da autoria da nota. Será que
foi Castrou ou Xavier, dois frequentadores de sua casa? D. Maria
Antonia descobre que foi Xavier quem escreveu a nota, pois ele mesmo
contou a ela devido ao respeito que tinha pela dona da casa.
Sem motivo aparente,
a partir desse mês é que Fulano Beltrão muda sua
vida completamente. O narrador não pode explicar o motivo pelo
qual o personagem principal, justamente aos 40 anos, mudou sua
personalidade. Mas Machado nos deixou em outro conto, no qual ele
explica de forma teórica, o perfil que Fulano Beltrão
adotou de forma prática. Em “Teoria do Medalhão”,
conto publicado na Gazeta de Notícias, no dia 18 de dezembro
de 1881 e depois selecionado e republicado na coletânea de
contos “Papéis Avulsos” (1882), Machado trata
justamente desse estilo de vida, ou mais precisamente uma
“profissão”, que o personagem adota, para poder
entrar e ser reconhecido no meio social.
Nos dias 22 ou 23,
como bem lembra o autor, ele presenteia a Santa Casa de Misericórdia
com um bilhete da loteria de Espanha. A carta de agradecimento que
ele recebeu do provedor da casa foi publicada nos jornais, após
debater em sua casa se devia ou não realizar a publicação
e levar ao público a sua benfeitoria. Com isso, o narrador diz
que:
“(...)
Digo-lhe sumariamente, que as injustiças da rua começaram
a ter nele uma vingador ativo e discursivo; que as misérias,
principalmente as misérias dramáticas, filhas de um
incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a
iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser prontos e
públicos (...).” (Assis, Machado de, 2014, 267).
Outro conselho da
“Teoria do Medalhão” diz respeito aos benefícios
da publicidade. Machado (2014, 87) cita que “ao invés de
inventar um Tratado sobre a criação de um carneiro, ele
compra um e oferece aos amigos em forma de jantar para que seja
divulgado entre as pessoas”.
O narrador também
menciona que Fulano Beltrão, mesmo antes da Lei do Ventre
Livre tentava comprar os filhos dos escravos que seus senhores
colocavam para vender no comércio. Vejamos esse trecho do
conto:
“(...) Antes
da lei de 28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na praça
do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se
pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três
quartas partes das subscrições, com tal êxito,
que em poucos minutos ficava o preço coberto (...).”
(Assis, Machado de, 2014, 267).
Fulano Beltrão
sentia-se bem realizando a justiça social. Tanto que promover
um baile em homenagem ao Almirante Barroso pela vitória na
Batalha de Riachuelo, que, segundo o autor, o baile já estava
preparado mesmo antes de saber se a batalha havia sido vencida ou
não. Contudo, para o personagem principal o motivo mais
importante do baile era a recreação de sua família.
Colocou um retrato do Almirante Barroso no meio de um troféu
de armas em frente ao retrato de D. Pedro II. No dia seguinte, todos
os jornais falaram do baile. Em relação ao contexto
político que derrubou o Imperador, o jurista Aurelino Leal faz
uma ressalva acerca da pessoa de Pedro II.
“Não
sei até quando duraria esse estado de cousas, se a Republica
não surpreendesse a historia política do país,
dando um salto por sobre determinantes sociológicas e
anunciando o seu advento inesperado. Havia fatores de que era preciso
desconfiar sempre: o das dissensões intestinas dos partidos,
levando a quedas inesperadas de gabinetes, a substituições
intempestivas, capazes, só por si, de perturbar reformas
constitucionais, e o do Senado, cioso da sua vitaliciedade. Talvez o
único a não lhe criar embaraços seria o segundo
imperador, a quem, com todo o meu sentir de republicano, distingo
ainda como o maior dos brasileiros”. (Leal, A., 1915, 190-191).
Certo dia, ao passar
pela Igreja da Lampadosa, Fulano Beltrão lembrou-se que fora
batizado naquela igreja e deu-a de presente um castiçal de
prata. Como sempre, os jornais noticiaram. Sua esposa receava a
entrada de Fulano nas cogitações públicas, como
relata o narrador. Segundo Machado de Assis, d. Maria Antonia via
isso como a serpente bíblica que entrava no Éden (seu
lar), não para tentar Eva, mas para tentar Adão, que em
seu ver, era seu marido Fulano. O personagem principal disse a esposa
que só havia mudado de costumes e não de sentimentos. A
respeito do íntimo dos personagens machadianos, diz Alfredo
Bosi:
“A partir das
Memórias Póstumas e dos contos enfeixados nos Papéis
Avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas
não de todo) a contradição entre parecer e ser,
entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e o público
e a corrente escusa da vida interior. E, reconhecido o antagonismo.
Seu olhar se detém menos em um resíduo romântico
de diferença que na cinzenta conformidade, na fatal
capitulação do sujeito à Aparência
dominante”. (Bosi, A., 1997, 84)
Fulano ainda disse
que a filha já entrara na hora de casar e, por isso, a casa
deles não poderia ficar fechada como um mosteiro. Acerca da
situação de sua filha, vejamos um trecho do conto.
Fulano disse que (Assis, 2014, 268), “tinha obrigações
morais com a sociedade; ninguém podia a filha caminhava para a
idade do matrimônio, e casa fechada cria morrinha de convento”.
Depois, ele comprou
uma vitória, após sugerir a mulher, que a principio
sentiu um pouco de prazer só em pensar em ter um carro, mas
não sabia para quê esse gasto. Entrou na política
no ano de 1868. Apresenta-se novamente outro fato que remonta ao
conto “Teoria do Medalhão”, acerca da atuação
no meio político. É tanto que, segundo a teoria, não
precisa se excluir da política. Machado (2014, 88) diz: “Podes
pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou
ultramontano, com a cláusula única de não legar
nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer somente
a utilidade do scibboleth bíblico”.
O narrador diz que
se lembra do ano, pois coincidiu com a queda dos liberais. É
nesse sentido que se percebe a relevância de um fato que foi
vivenciado por Machado em sua vida profissional e que ele transcreve
em forma de ficção, como se fosse da lembrança
do personagem-narrador. Segundo uma nota de John Gledson numa
coletânea de contos de Machado de Assis:
“No fim da
década dos 1860 dois eventos cruciais selam a sua ascensão
social. Em 1868, sobreviveu à súbita mudança de
governo, de liberal a conservador, tachada de “golpe de
Estado”, e em que esteve a pique de perder o emprego. A amizade
literária com José de Alencar, ministro de Justiça
do novo governo, serviu para que mantivesse o posto”. (Gledson,
J., 2014, 484).
Esse fato da vida
política de Machado de Assis revela a relevância da
interpretação política desse conto, como propõe
Fredric Jamenson. Dessa forma, continuemos a descrever os fatos
narrados no conto machadiano.
Numa de suas
acaloradas visitas às sessões da Câmara, viu-se
que o presidente do Conselho de Ministros sorriu para Fulano Beltrão,
como para cumprimentá-lo. Quando o Ministério caiu, diz
o narrador que Fulano tratou de dizer a Visconde de Itaboraí,
o mesmo que disse ao conselheiro Zacarias de Góis. Contudo,
após esse “golpe de Estado” Fulano perdeu a
eleição e deixou a política. Oliveira Vianna diz
o seguinte a respeito da queda dos ministérios:
“Em julho de
68 caía o gabinete Zacarias com uma Câmara unanimemente
liberal. Esta Câmara, Itaboraí, conservador, dissolveu:
a Câmara nova, eleita no mesmo ano, veio unanimemente
conservadora! Em 1878 deu-se o contrário; foi o Gabinete
conservador que caiu; substituiu-o um Gabinete liberal, o Gabinete
Sinimbu: e a Câmara, soberbamente conservadora, dissolvida,
voltou soberbamente liberal!” (Vianna, Oliveira, 2006, 24).
A partir disso foi
que ele decidiu entrar para a Maçonaria. Quando aconteceu a
questão dos bispos, ele não se manifestou, a princípio,
em respeito à religiosidade de sua mulher. Contudo, quando a
questão tomou chegou ao ponto da prisão dos bispos de
Olinda e do Pará, Fulano teve de manifestar-se. E com todo o
entusiasmo e determinação que empregava em diversas
situações, ele participou de reuniões, onde
discutia a liberdade de consciência, etc. Vejamos o trecho do
conto:
“Mas o
conflito tomou tais proporções que ele não podia
ficar calado; entrou nele com ardor, a expansão, a publicidade
que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da
liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçom
de enfiar uma opa; assinou protestos, representações,
felicitações, abriu a bolsa e o coração,
escancaradamente”. (Assis, Machado de, 2014, 269)
No que diz respeito
a entrada de Fulano na Maçonaria, menciona Luís Carlos
Cancellier de Olivo:
“Beltrão
não entrou para a Câmara dos deputados, mas foi admitido
na maçonaria. Condição importante para a
militância política do século XIX. A questão
maçônica estava na ordem do dia, pois a igreja católica
exigia um monarca fiel a Roma. O fato de D. Pedro II ter tido
ligações com o Grande Oriente brasileiro irritou o
catolicismo, levando parte do clero para o lado republicano”.
(Olivo., C. Cancellier de, 2011, 89-90).
A esposa de Fulano
faleceu em 1878. Mesmo enterrando a esposa conforme ela solicitou,
sem pompas, mesmo assim ele mandou que lhe esculpissem um mausoléu
na Itália, que ficou exposto na Rua do Ouvidor durante quase
um mês. A filha, que já estava casada e encontrava-se na
Europa, assistiu a inauguração do túmulo.
O narrador diz que
deixou de o ver durante 4 anos. Foi quando a doença acometeu
Fulano. Ele recebia suas visitas com muito entusiasmo e, na manhã
em que morreu, ficou feliz ao ver que o jornal citava o seu estado
físico. No final da leitura do testamento constatou-se que
Fulano legou 30 contos de réis para uma subscrição
pública que iria erigir um monumento com uma estátua de
Pedro Álvares Cabral. Vejamos um trecho do testamento narrado
pelo escritor:
“Recomenda que
a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no
pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da
Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração
mineira, e o de dois cidadãos da presente geração,
‘notáveis por seu patriotismo e liberalidade’, à
escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para levar a empresa
a cabo.” (Assis, Machado de, 2014, 270)
Ao final do conto, o
narrador até chega a duvidar se a estátua será
mesmo construída. Mas, se caso vir a ser, o autor pergunta ao
leitor e dá a sugestão de que Fulano Beltrão
merecia estar entre os medalhões da estátua.
O Conto “Um homem célebre”
O conto “Um
homem célebre” foi publicado, precipuamente, na Gazeta
de Notícias, no dia 29 de junho de 1888. Posteriormente, foi
selecionado pelo escritor e republicado na coletânea “Várias
Histórias” no ano de 1895. O personagem principal do
conto chama-se Pestana, um famoso compositor de música popular
do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. O conto
inicia-se quando Pestana volta de um sarau no qual fora convidado a
tocar, sarau este realizado para comemorar o aniversário da
viúva Camargo, no dia 5 de novembro de 1875.
Naqueles dias,
Pestana estava em crise por não poder compor músicas
clássicas à altura dos grandes compositores que eram
sua fonte de inspiração, a exemplo dos classicistas
como Mozart e Haydn. Quando ele chegou a sua casa, após o
sarau, pediu a um escravo que acendesse o gás da sala e que
lhe deixasse sozinho. Daí é que ele contemplou vários
retratos de diversos compositores clássicos que tinha
pendurado em sua parede. O primeiro que viu foi o do padre que lhe
ensinou latim e música, e que diziam que era seu verdadeiro
pai. A verdade é que o falecido padre lhe deixou de herança
a casa em que ele morava. O padre também gostava de música
e foi quem despertou, segundo o narrador, o gosto pela música
em Pestana, por vias de sangue ou não, segundo alguns, coisa
que, segundo Machado de Assis, não é de interesse do
conto.
De acordo com a
teoria do romance de Georg Lukács:
“A melancolia
de ser adulto nasce da experiência conflitante de que a
confiança absoluta e pueril na voz interior da vocação
se rompe ou diminui, mas de que também é impossível
extrair do mundo exterior, a cujo despotismo nos devotamos agora
docilmente, uma voz que indique sem equívocos o caminho e
determine os objetivos.” (Lukács, G., 2000, 87).
A fim de justificar
esse posicionamento de Lukác, Fredri Jameson, que estudou com
afinco a sua obra, diz o seguinte:
“Os ensaios de
Lukács sobre o realismo podem servir como exemplo básico
da maneira pela qual o texto cultural é tomado como modelo
essencialmente alegórico da sociedade como um todo, seus
símbolos e elementos, tais como a ‘personagem’
literária, vistos como ‘tipificações’
dos elementos de outros níveis, e em particular como figuras
das várias classes sociais e divisões de classes.”
(Jameson, F., 1992, 30).
Com isso, podemos
seguir no estudo desse conto, a fim de concluirmos a nossa
interpretação e mostrar como é possível
compreender questões jurídicas através dos
contos e dos personagens machadianos.
Nessa noite ele
tentou o quanto pode, entre várias xícaras de café,
influenciarse para escrever alguma sonata ou partitura digna de um
compositor clássico. Até foi encostar-se na janela de
sua casa, e como diz o escritor, nem passou pela cabeça dele a
imagem de Sinhazinha Mota, uma fã das polcas que ele compunha.
O editor das
partituras de Pestana aproveita-se da grande repercussão dos
momentos políticos pelo qual passava o Império, para
sugerir o título das polcas compostas pelo mestre. Contudo, a
qualidade das obras do compositor não necessita de tomar
emprestado o interesse público pela queda do ministério
para ganharem notoriedade, pois suas músicas apresentam uma
qualidade excepcional e caem no gosto popular de forma espontânea.
Em um desses casos, Pestana compôs uma polca que lhe deu o nome
de ”Pingos de Sol”. Mas o editor quis aproveitar o
momento da assinatura da Lei do Ventre Livre e propôs outro
nome para a composição, tais como “A lei de 28 de
setembro” e “Candongas não fazem festa”.
Pestana resolveu
casar-se com uma moça de nome Maria, que conheceu na Igreja de
São Francisco de Paula quando ela cantava, segundo relatou o
tio de Sinhazinha Mota. Através do amor que sentia por ela,
decidiu compor um noturno que ia chamar de “Ave Maria”.
Contudo, Maria adoeceu, e, numa manhã por volta de 1876 veio a
falecer nos braços de seu marido. Como era noite de natal, a
dor de Pestana aumentou ao ouvir num baile próximo que se
cantava as polcas de sua autoria. Então foi quando ele decidiu
deixar de ser músico, depois de compor um Requiem em homenagem
a um ano do aniversário de morte de sua esposa.
Passados dois anos,
já em 1878, o editor veio propor-lhe compor outra polca, para
aproveitar o momento político, que ele mesmo relata a Pestana:
“— Mas a
primeira polca há de ser já, explicou o editor. É
urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram
chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há
de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não
é política; é um bom título de ocasião.”
(Assis, Machado de, 2014, 424)
Vejamos o que diz
Aurelino Leal a respeito dessa situação:
“Os de 70, 71,
84, os dois de 85 e o de 88 dedicam memoráveis e crescentes
cuidados ao elemento servil, até a sua extinção.
O segundo gabinete de 1862, para não falar no primeiro, de
Zacharias, que durou seis dias apenas, contentavase com refrear os
abusos da prisão preventiva, com aliviar os serviços da
Guarda Nacional e separar a policia administrativa da judiciária.
Será o mesmo o programa de 1868, acrescido da reforma
eleitoral, que cm 78 e 80 se agitou em caminho da eleição
direta”. (Leal, A., 1915, 188)
Oliveira Vianna
também comenta a respeito:
Nestas alternativas
das situações partidárias, o Imperador parecia
não ter outro critério senão o do tempo: ele
fazia o revezamento dos partidos conforme o tempo da estadia deles no
poder. Em 1868, depois de seis anos de domínio do partido
liberal, fazia subir ao poder, com surpresa geral, o partido
conservador. Em 1878, depois de dez anos de governo conservador,
fazia subir os liberais. (Vianna, Oliveira, 2006, 29).
Cumprindo o
contrato, Pestana foi compondo polcas até 1885, quando,
segundo Machado de Assis (2014, 425) “a fama de pestana
dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de
polcas”. A respeito do projeto para as eleições
diretas, diz Oliveira Vianna:
“Em tese,
dentro dos princípios de pura teoria do regime representativo,
era este o mais legítimo processo de sondagem da opinião
pública. O Imperador apelou para ele várias vezes,
quando concedia a dissolução da Câmara. Foi o que
fez em 68, quando chamou Itaboraí. Foi o que fez em 78, quando
chamou Sinimbu. Num e outro caso, tendo modificado a coloração
política do Gabinete, dissolvia a Câmara e procurava
informar- se da opinião do país através da
coloração partidária do futuro Parlamento”.
(Vianna, Oliveira, 2006, 20).
Com relação
à mesma situação, diz Aurelino Leal:
“Depois da
reforma eleitoral instituindo a eleição direta, o
gabinete de 3 de julho de 1882 se reportou ao programa do partido
liberal, de 1868, prometendo « promover, quanto possível,
a descentralização administrativa e fortalecer a
autonomia das câmaras municipais... por meio da melhor
classificação ou distribuição das rendas
gerais, provinciais e municipais...”. (Leal, A., 1915, 184).
A lei das eleições
diretas só veio se aprovada no governo do conselheiro Saraiva.
Conforme Aurelino Leal:
“A lei da
eleição direta fez-se por via ordinária, e
Saraiva declarou que a tal respeito « nunca tivera escrúpulos
constitucionais ». De outro lado, as dissidências
intestinas dos partidos tornavam difícil uma reforma
importante”. (Leal, A., 1915, 189).
Pestana ficou doente
nesse mesmo ano, de uma febre que virou perniciosa. O editor foi a
sua casa para lhe falar que os conservadores voltaram ao poder e lhe
pedir que composse outra música. O enfermeiro que cuidava de
Pestana disse como estava o doente e o editor compreendeu. Mas
Pestana escutou e mandou chamá-lo. Vejamos o que Pestana disse
ao editor: “— Olhe, disse o Pestana, como é
provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo
duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais”.
(Assis, 2014, 425).
O narrador disse que
essa frase foi a única pilhéria que Pestana disse em
toda sua vida. E, realmente, Pestana tinha uma noção
das questões políticas que acompanhara. Pode-se dizer
que a crise pela qual Pestana passava, assim como a de outros
personagens de Machado, tais como Inácio, do conto “O
machete”, era a própria crise pela qual vivia o Império
brasileiro antes de cair.
Ele faleceu na
madrugada seguinte a essa conversa e segundo Machado de Assis (2014,
425), “bem com os homens e mal consigo mesmo”. Para
finalizar, vejamos a opinião de Paulo Bonavides a respeito do
período monárquico no Brasil:
“Em resumo, a
monarquia constitucional do Império do Brasil foi um
equilíbrio relativamente estável, pois durou 65 anos,
entre o princípio representativo, gerador de um
parlamentarismo sui generis, introduzido nos mecanismos
institucionais, e o princípio absolutista, dissimuladamente
preservado com prerrogativas e poder pessoa, de que era titular o
Imperador (...). A monarquia foi, não obstante, um largo passo
para a estreia formal de um Estado Liberal, vinculado, todavia, a uma
sociedade escravocrata, aspecto que nunca se deve perder de vista no
exame das instituições imperiais”. (Bonavides,
2011, 364).
Conclusão
Partindo da máxima
latina “ubi societas, ibi jus” (onde há sociedade,
há o direito), a forma de interpretar o processo de evolução
do ordenamento jurídico de um período a outro, em um
determinado Estado, pode ser visto através da observação
do escritor, que transforma em ficção o produto de sua
interpretação baseada no senso comum ou até
através de uma visão histórica, jurídica
ou sociológica de seu tempo.
Mesmo que Machado
tenha tratado o enredo de seus contos de modo que analisava o íntimo
da consciência do personagem, a sua maneira realista de
escrever trouxe traços do cotidiano político, jurídico
e social da época em que viveu, e, consequentemente, como
grande observador da sociedade carioca, ele adaptava os fatos da
realidade e transformava na realidade de seus personagens e o que
eles pensavam a respeito do contexto em que viviam dentro da ficção.
Com isso, é possível perceber quais eram as opiniões
de “Fulano Beltrão” e de “Pestana”, em
relação aos momentos políticos presentes no
enredo de seus respectivos contos.
Saber se Machado deAssis era liberal ou conservador, monarquista ou republicano, não
é nosso objetivo. Por isso, conseguimos ver através da
ficção literária como ocorreram as questões
constitucionais que levaram a queda da Monarquia, e Vimos como era a
relação entre o Estado e a Igreja, como se propagavam
os ideais políticos da época entre as classes sociais e
como estas questões abalaram a ordem constitucional (esfera
pública) influenciaram a vida de “Fulano” e de
“Pestana” (esfera privada).
Evidente que, a
partir do enredo, pesquisamos com base em outras fontes, tanto em
obras de juristas e historiadores contemporâneos de Machado de
Assis, como de outros historiadores, críticos literários
e juristas que pesquisaram a obra machadiana na atualidade, a fim de
compreender melhor as situações pelas quais passaram os
personagens de Machado.
Dessa forma, a
partir desse estudo interdisciplinar entre o Direito e a Literatura,
pudemos observar e analisar o ordenamento jurídico e a
realidade social da segunda metade do século XIX, sob outro
olhar, o olhar da produção literária, da Escola
literária da época (Realismo/Naturalismo) e com o
auxílio de um dos gênios da literatura mundial como
Machado de Assis.
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